Litigância simulada: O abuso do Poder Judiciário como forma de prejudicar terceiros

por Artur Saenz

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXV, nos apresenta o Princípio Constitucional do Acesso à Justiça, ou mais propriamente acesso à ordem jurídica justa, garantido a todos a possibilidade de reivindicar os seus direitos perante o Poder Judiciário em forma da tutela jurisdicional.

Ocorre que tem se verificado, com cada vez mais frequência, especialmente no âmbito do Direito Concorrencial, o abuso da utilização do Poder Judiciário de forma indiscriminada, com a finalidade de prejudicar terceiros.

Em algumas situações, a distribuição de reiteradas ações sem fundamentação jurídica adequada acaba por evidenciar um abuso do direito do acesso à justiça, causando um efeito anticompetitivo.

Trata-se de conceito ainda recente no Brasil, mas que há tempo já é debatido pela Corte Suprema dos Estados Unidos, sendo o ato denominado de sham litigation – litigância simulada.

O abuso na utilização do Poder Judiciário com a finalidade de prejudicar terceiros ainda não é previsto pela legislação brasileira, e acaba por ser confundido pela litigância de má-fé. No entanto, os dois institutos não devem se confundir. A litigância de má-fé diz respeito ao abuso de um direito processual com a intensão de interferir no andamento processual, ao passo que a sham litigation representa verdadeiro abuso do direito do acesso à justiça que cause um efeito prejudicial à terceiro.

Sabe-se que, além demandar custos financeiros, uma demanda judicial pode prejudicar a atividade empresarial na medida em que, para muitos, o fato de uma empresa ser demandada em um processo judicial é o suficiente para levantar suspeitas quanto a sua idoneidade – ainda mais diante de tantas tomadas de preço pelas quais todas as empresas passam.

E é neste ponto que o abuso do Poder Judiciário configura a prática da sham litigation: quando a sua finalidade é prejudicar terceiros.

Apesar de não previsto na legislação brasileira, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) passou a utilizar recentemente o conceito da sham litigation em seus julgamentos, com fundamento na violação à Lei Antitrueste decorrente da infração à ordem econômica, inclusive condenado três empresas representadas perante o órgão ao pagamento de multa pelo ato praticado[1].

Diante dos julgados, o CADE concluiu que a o abuso no direito de peticionar restou demonstrado em razão da: [1] distribuição de ações sem fundamento; [2] utilização de informações falsas; e [3] a busca por legislações ou decisões administrativas inválidas.

Verifica-se, portanto, que há a necessidade de alguns requisitos para que se reconheça que o acesso à justiça, direito fundamental garantido constitucionalmente, represente um abuso com a finalidade de prejudicar terceiros, passível de gerar multa.

Inclusive, a prática do sham litigation já foi reconhecida pelo Poder Judiciário, conforme podemos observar pelo julgamento do Recurso Especial nº 1.817.845-MS, em que o relator Ministros Paulo de Tarso Sanseverino bem aponta a necessidade de cautela para reconhecer a sua configuração, para que não haja uma repressão ao direito de ação:

“A despeito de a doutrina da sham litigation ter se formado e consolidado enfaticamente no âmbito do direito concorrencial, absolutamente nada impede que se extraia, da ratio decidendi daqueles precedentes que a formaram, um mesmo padrão decisório a ser aplicado na repressão aos abusos de direito material e processual, em que o exercício desenfreado, repetitivo e desprovido de fundamentação séria e idônea pode, ainda que em caráter excepcional, configurar abuso do direito de ação. A excepcionalidade de se reconhecer eventual abuso do direito de acesso à justiça deve ser sempre ressaltada porque, em última análise, trata-se um direito fundamental estruturante do Estado Democrático de Direito e uma garantia de amplíssimo espectro, de modo que há uma natural renitência em cogitar da possibilidade de reconhecê-lo em virtude da tensão e da tenuidade com o próprio exercício regular desse direito fundamental.  Respeitosamente, esse não é um argumento suficiente para que não se reprima o abuso de um direito fundamental processual, como é o direito de ação. Ao contrário, o exercício abusivo de direitos de natureza fundamental, quando configurado, deve ser rechaçado com o vigor correspondente à relevância que essa garantia possui no ordenamento jurídico, exigindo-se, contudo e somente, ainda mais prudência do julgador na certificação de que o abuso ocorreu estreme de dúvidas.”  

Se extrai, portanto, que o reconhecimento do abuso ao direito de ação deve ser interpretado sempre de forma excepcional, evitando a violação do direito de acesso à justiça, ao passo que, quando reconhecido, há de ser reprimido.

O que se verifica é que, apesar da legislação brasileira ainda não prever expressamente a hipótese da sham litigation, já é possível observar tanto órgãos administrativos, quanto o próprio Poder Judiciário, através da Corte Superior, reconhecer a sua ocorrência e aplicando penalidade pela sua prática.

Artur Saenz é advogado no escritório Claudio Zalaf Advogados Associados.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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