O BBB 24 e a triste realidade brasileira

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

“Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta” (Albert Einstein)

O Big Brother Brasil, ou no jargão orwelliano, o Grande Olho ou Grande Irmão, em sua edição de 2024, desconstruiu a concepção de reality show até então desenvolvido no Brasil. Tanto no BBB, como na Fazenda, A Grande Conquista ou no finado A Casa dos Artistas, o foco eram as lentes das câmeras espalhadas pelos locais de disputa.

O interesse era mais a fama que o dinheiro. O segundo requer ralar, ter estratégia, jogar o tempo todo. O primeiro, basta poses de corpos ou situações que apimentam a audiência, uma discussão por futilidades ou namorar no edredom.

Para este estereótipo, é preciso corpão violão para as meninas e bombados para os meninos. O perfil social também contava o de loiras e lindinhas, de preferência de classe média. Infelizmente, a estupidez humana, era ponto de largada e de chegada, tornando a atração chata para o entretenimento, bem como fútil, longe de suscitar debates na sociedade.

Coincidência ou não, os anos de bolsonarismo no poder foram os piores para os realitys, em especial o Big Brother. O festival de misoginia, machismo, racismo e outros, passados como recibo de autenticidade sem questionamentos dentro ou fora dos programas, foram hegemônicos.

A ideia do se entreter com um produto de televisão foi afastando os altos índices de popularidade, inclusive nas faixas de poder aquisitivo mais baixo, que tem a TV Aberta como quase única alternativa de lazer.

Aí vem o BBB 24, e uma mudança extraordinária vai acontecer. Uma hecatombe que enterra a estupidez (pelo menos nesta edição) coloca uma outra realidade. A realidade da convivência entre um motorista de aplicativo, uma sacoleira do Brás, uma confeiteira, uma assistente social, um motoboy, mas também alguns representantes das elites afortunadas deste país.

Mas só o perfil social não bastava, era preciso virar a chave, construir um outro conteúdo. Entra gênero, raça, classes sociais e muitos outros do dia a dia do Brasileiro. Mas não entra para consolidar o ódio aos diferentes ou para propagandear uma política de exclusão.

Davi Brito, o campeão, mesmo com alguns erros culturais, mostrou a cara do Brasil do Brasil, como sua amiga Bia não cansou de repetir na casa. O “Brasil com S” mostrou ao “Brazil com Z” que tem voz e vez. Esperamos que não seja apenas na TV. Pois se dependermos dos endinheirados, o “Brazil” sempre será hegemônico.

No domingo uma multidão de gente da classe média babando ovo para gente das elites invadiu as areias de Copacabana para mais uma vez defender golpes contra a democracia. Mas o discurso mais esfuziante da estupidez desta turma veio do deputado federal Nikolas Ferreira.

Em seu rol de besteirol e insultos, este da manifestação bolsonarista irritou até a primeira-dama Michele: “Precisamos que os homens tenham mais testosterona”.

A realidade ainda prosseguiu nas telas de nossas ruas esta semana. O dono do time de futebol do Botafogo, o americano John Textor, depôs na CPI das apostas esportivas. Apresentou aos nobres senadores da República denúncias sem provas de supostas manipulações nos dois últimos Campeonatos Brasileiros.

Os edis, ao invés de buscarem informações concretas sobre as denúncias, prenunciaram uma festa de puxa-saquismo, a ponto de pedirem desculpas ao gringo por não se comunicarem em inglês. Sem falar que, entre uma pronúncia de um já português ruim, palavras enroladas eram proferidas.

A única pergunta pertinente veio de um bolsonarista: o ex-jogador Romário. Ele perguntou se estas denúncias sem evidências práticas não eram uma forma de Textor tentar vender a SAF do Botafogo. A resposta do empresário foi de que nunca tinha ouvido uma pergunta tão estúpida. E quiçá respondeu ao questionamento.

Textor se alia a Elon Musk, dois bilionários, cujo único objetivo é ganhar mais dinheiro e, se precisar atentar contra a democracia, feito um colonizador, farão. É a estupidez que o “Brasil com S” mostrou no BBB 24 que não tem. Mas este Brasil não pode ficar no programa.

Vem pra fora, vem?

Dicas culturais

Em função dos 60 anos do golpe militar de 1964, vamos sugerir dez produções nacionais que abordam o tema. Fica a sugestão para se utilizar os filmes em salas de aula, grupos sindicais, movimentos populares e outros.

Buscar conhecimento sobre a História do Brasil é concluir que Ditadura Nunca Mais. Espero que gostem.

Batismo de Sangue: Quando li o livro, ainda nos anos 80, em que a película foi adaptada, pensava já como seria nas telas. Nem sempre filmes baseados em literatura dão certo, mais ainda em se tratando de uma obra não ficcional, como a escrita por Frei Beto. Aliás, sendo uma autobiografia real de Beto e os dominicanos, o risco era maior ainda. Mas a direção de Helvécio Raton foi fiel à verdade, narrando a história dos frades com a Aliança Libertadora Nacional (ANL), grupo de Carlos Marighela na luta contra a ditadura militar. Destaque para o ator Caio Blat, que interpretou Frei Tito, torturado pelos militares e que cometeu suicídio em função destes tormentos. Assistir na Globoplay ou na Amazon Prime.

Lamarca: Outra cinebiografia, baseada no livro “Lamarca: O Capitão da Guerrilha” de Emiliano José e Miranda Oldack. Carlos Lamarca rompe com o exército em 1967, onde, com manobras militares espetaculares, escapa quase que sozinho das tropas do exército nas florestas do Vale do Ribeira. A partir daí, vai para a clandestinidade, entra no grupo VAR-Palmares. O filme mostra esta trajetória e seu romance com Clara, que rendeu cartas de amor e poemas lindos. Embora a direção de Sergio Resende pese um pouco a mão em diálogos desconexos e fora de contexto, tem fidelidade com a literatura, além de um elenco estelar com destaque para Paulo Betti como Lamarca e Carla Camuratti como Clara. Assistir no Youtube.

O que é isso, companheiro?: É desta lista a produção da qual não gostei. Não foi fiel ao livro homônimo de Fernando Gabeira e nem chegou perto de uma adaptação honesta. Bruno Barreto, em seu primeiro filme depois de voltar dos Estados Unidos, ao receber inúmeras críticas por dar conotações e mesmo informações diferentes da obra de Gabeira, disse que sua leitura foi estética e não política. Para nós, a condução é um festival de ideologia de direita centrista dos tempos de tucanato no poder, época em que o filme foi lançado. Colocar os guerrilheiros como vilãos, dourar a pílula para a ditadura militar mostrando um torturador arrependido depois de machucar pessoas e ainda por cima apresentar fatos equivocados e que não ocorreram. O filme vale para entender o momento histórico, em que as esquerdas recorriam a sequestros de autoridades para libertar companheiros e companheiras da cadeia e da morte. Mas, para aprofundar, primeiro leia o livro, que é bem melhor, contado por um dos participantes do fato. Assistir no Globoplay e no Amazon Prime.

O dia que durou 21 anos: Uma película que, sem chover no molhado, deveria estar no currículo de sala de aula. Não só pelo valor histórico, que narra de forma precisa e profunda a participação decisiva dos Estados Unidos no Golpe de 64. Mas esteticamente é de dar aplausos esticados. Unindo a tecnologia digital com o roteiro, o documentário nos prende nas minúcias de uma trama intrincada em que o povo brasileiro tomou um golpe que lhe custou 21 anos de ausência de liberdade. A mistura de ficção e realidade, às vezes para quem carece de conhecer a história, confunde um pouco. Mas apresenta o aspecto cinematográfico algo digno de Hollywood. Camilo Tavares, filho de um jornalista que lutou contra a ditadura, teve uma direção que ouviu os dois lados, típico de um bom jornalismo e aliando um ritmo frenético da sétima arte. Fantástico. Assistir na Apple TV e Amazon Prime.

Tatuagem: O filme é de 2013, mas fui assisti-lo recentemente. Uma produção que traz a direção da nova geração do cinema pernambucano, de filmes como Amarelo Manga, Bacurau e outros. Hilton Lacerda, anteriormente, foi o responsável por vários roteiros vindos de Recife. “Tatuagem” foi seu primeiro longa de ficção que dirigiu. Baseado em uma companhia teatral, o Grupo Vivências, ambienta sua história em um local, feito um palco café. A ambientação é o ano de 1978, a ditadura abria, mas nem tanto, a censura estava viva e muito ativa ainda. Falar de ânus como símbolo de liberdade, naquele período, era pedir pau de arara. O filme mostra uma trupe de artistas anarquistas, onde o núcleo LGBTQ+ se destaca. A relação conservadorismo, exército e cultura com sexo, erotismo e democracia é maravilhosa. Destaque para Irandir Santos como Clésio, o líder do grupo, e Arlindo Araújo como Fininha, um soldado amante do artista. Assistir na Netflix, Amazon Prime e Apple TV.

Zuzu Angel: Choro em produções cinematográficas, somente quando a emoção de um trabalho extraordinário me bate fundo. Zuzu Angel, a história da estilista famosa de classe média alta, que denuncia a ditadura militar por matar seu filho Stuart Angel, é magnífica. Em um ritmo de ação e aventura, a realidade histórica nos coloca na velocidade de uma ficção da mais alta qualidade. Sergio Resende acerta na direção de um roteiro que nos coloca sempre como participantes da película. Começa pela trilha sonora com a versão de Pedro Luís e Roberta Sá para “Dê um Rolê”, dos Novos Baianos, e termina com “Angélica”, a música tributo de Chico Buarque citada no filme, a mulher que enfrentou os generais. Patrícia Pillar, como a estilista, e Luana Piovani como a então modelo que usava as criações de denúncias contra o regime, Elke Maravilha, são os destaques. Assistir na Apple TV e Prime Vídeo.

Cabra Cega: filme que lançou o hoje global Leonardo Medeiros para o conhecimento público. A história mostra um militante de um grupo de guerrilha que toma um tiro em confronto com os militares e será recolhido a uma das casas que serviam a clandestinidade. Lá conhece Rosa e sua relação de militância tem momentos de ódio e amor e, claro, medo. Toni Venturi dirige uma película quase toda ela passada dentro de um apartamento. O ambiente escuro e um som quase fúnebre atrapalham um pouco o ritmo do thriller. Mas vale para entender o que foi aquele momento dos chamados anos de chumbo. Assistir na Amazoning Prime e na Aplle TV.

O ano em que meus pais saíram de férias: Cao Hamburguer, conhecido por produções para crianças, em sua estréia no cinema para adultos não deixa de lado os valores dos pequeninos. O afeto, o carinho, a esperteza, de um menino de 12 anos que acredita que os pais saíram em viagem de férias e que descobre que seu avô morre, se vê diante da diversidade do bairro judeu do Bom Retiro, em São Paulo. Os pais fogem da ditadura e o menino, em pleno 1970, com a Copa do Mundo de Futebol no México e o milagre econômico, um engodo para esconder as atrocidades nos porões do regime, precisa viver sem saber se adaptar aquele novo mundo. Lindo, sensível e necessário para os dias de intolerâncias. Assistir no Google Play.

Pra frente Brasil: Roberto Farias precisa ser lembrado pela coragem de filmar histórias, quando elas, verídicas, borbulham no dia a dia. “Pra Frente Brasil” foi lançado ainda na ditadura, a princípio em uma única sala, o Cine Gazetinha, quase na clandestinidade. A película mostra a prisão de um trabalhador confundido com um militante de esquerda. Os militares o torturam e o matam. O diretor encena os anos de chumbo, o período mais cruel da ditadura sob o comando do General Médici. Talvez o medo da censura e de perseguições, os agentes do regime são escondidos com imagens bem escuras. Pareceu para parte da crítica um filme de bang-bang, mas foi pioneiro na fita denúncia. Assistir no Youtube.

Marighella: Wagner Moura começou o projeto de levar aos cinemas a história do brasileiro amante da liberdade, Carlos Marighella, em 2015. Problemas de captação de recursos e indefinição do ator no papel título (Wagner queria Mano Brown, que não pode), atrasaram em quatro anos a exibição. Tudo pronto, a censura do governo bolsonarista e genocida tentou impedir que a película aqui fosse rodada. Mesmo com todas as dificuldades, a obra estreou em 2021. O roteiro bem trabalhado mostra a condução de Marighela à luta contra a ditadura, até seu assassinato pelo delegado Sergio Paranhos Fleury. Adaptado do livro homônimo do jornalista Mário Magalhães, Wagner Moura, em sua estreia atrás das câmeras, dá um show na direção de atores, no ritmo das cenas e na escolha da trilha sonora. Destaque para Seu Jorge no papel título e Bruno Gagliasso como o delegado. Maravilhoso. Assistir no Globoplay e Amazon Prime.

Ditadura nunca mais

Um bom final de semana a todas e a todos.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

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