Um conto de Natal

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

(Leia este texto ao som de Que País é Esse? e Monte Castelo, do Legião Urbana)

As crianças caminhavam lentamente e conversando bem alegres até a sala de aula do salão da Igreja de Santa Luzia, para um dia de catequese. Bem alinhadas e com roupinhas de missa, como se convenciona a chamar o fato de que pobre quando vai a compromissos religiosos coloca sua melhor roupa.

Vestir os filhos também era uma tarefa importante. Deixá-los apresentáveis e bonitos é uma obrigação perante Deus. Mas alguns insistiam em ir de chinelos quase descalços a casa do Criador e com roupinhas, embora limpinhas, velhinhas e com cheiro de naftalina.

Maria Lúcia, mãe de uma já moça adulta, nunca se preocupou com aparências, como modismo. Para ela, Jesus Cristo se fez ser humano e aqui nasceu em uma manjedoura de um estábulo de cavalos e viveu em Nazaré, uma vilinha de pobres e trabalhadores.

Quando assumiu sua missão, não quis luxo por onde passou, tampouco dormir em berços e camas de ouro. Jesus vivia com seus discípulos e amigos, todos pobres, homens rudes que viviam do suor de seu trabalho, não tinham tempo para se preocupar com coisas pequenas.

Lúcia, ou Professora, com os alunos a chamavam, não fazia distinção alguma de seus meninos e meninas. Nas aulas, gostava muito de, ao começar, a perguntar se tinham se alimentado antes de vir para a catequese. Às vezes descobria vários que ou nada comeram ou apenas umas querelas de pão. Leite e manteiga, nem pensar.

Ela e outras colegas igualmente catequistas sabiam destes imprevistos, que aconteciam todo o santo dia. Se cotizavam e compravam alimentos para uma refeição da manhã, de forma comunitária e dividindo o pão, como Cristo na passagem da multiplicação dos pães e peixes.

Maria Lúcia está muito preocupada com o Natal daquelas crianças. A Igreja fazia todos os anos uma campanha de arrecadação de alimentos e brinquedos. A comunidade se organizava e, de casa em casa, pedia a ajuda às famílias mais carentes. A surpresa era que até as mais necessitadas dividiam o que tinham com os outros.

A distribuição era feita na véspera de Natal com uma celebração feita pelo padre Luís Carlos e, depois, o grupo circense e de teatro da comunidade alegrava as crianças com brincadeiras.

Mas o momento chave era a chegada do Papai Noel. Lisandro, um pedreiro atuante na Igreja, líder da Pastoral Operária, se vestia com a roupa velha e fazia questão de não colocar barba postiça branca. Negro, usava uma bela barba preta, realçando seu rosto. O Noel negro dividia o papel com a mamãe Noel, a Trans Margo, e sua vestimenta do bom velhinho toda lilás.

Bem, a catequista sabia que a distribuição fazia as pessoas felizes na celebração do nascimento de Cristo. Mas sabia também que, no restante do ano, as mesas vazias, o silêncio e o choro baixinho reinavam nos lares dos bairros da região. Isto lhe cortava o coração.

Mas o pior foi o que tinha acontecido horas antes de chegar a escola catequética.

Como faz todos os dias, ao sair de casa, passa primeiro no açougue do seu Paulo para encomendar uns quilinhos de carne para as refeições do dia. Naquele dia, se surpreendeu com uma cena horripilante. Uma fila de pessoas se formou do lado de fora do estabelecimento. Composta por vários moradores do bairro, os cumprimentou com um bom dia, mas nada perguntou o que se passava ali.

Adentrou o açougue e viu seu Paulo colocando vários ossos de animais, em sacos. Pesava-os, fazia o preço e entregava as pessoas.

Aquilo a chocou. Viu Stelinha, filha da colega catequista Dona Cida, e perguntou: “Que é isso Stela?”. A menina, toda sem graça, se pôs a chorar copiosamente, sendo consolada por outras mulheres que também choravam e estavam na fila para comprar ossos.

O que restava naquele instante era ser solidária e chorar junto com aquelas mulheres, a maioria mães, que estavam ali para tentar buscar formas de alimentar suas crias. Maria Lúcia, embora fosse de uma família humilde, o pai funcionário dos Correios e Telégrafos, aposentado, ganhava o suficiente para que ninguém dos seus passasse necessidades.

Lembrou que, quando era criança nos anos 90 do século passado, ao ler o jornal viu estampada na capa a foto de uma menina da sua idade, uns seis, sete anos, sentada em um beco sujo, com um pedaço de pão velho nas mãos e toda maltrapilha. Adulta, soube se tratar da situação e miséria que mais de 50 milhões de pessoas viviam no Brasil.

Mas os ossos já estavam sendo demais. Tínhamos saído de uma pandemia, que separou as famílias pela morte. O sofrimento da perda diminuiu as ceias de Natal e fez a saudade que dói invadir o coração das pessoas.

Agora, as dores invadiam os estômagos das pessoas. Entravam pelas entranhas dos organismos humanos, criando uma sensação real de morte que vem a jato e não a galope.

Maria Lucia, disse para si mesma: “Não, basta, não dá”. Saiu dali e foi para a Igreja.

Antes de ir esperar os seus alunos, passou na capelinha e viu um folheto da Pastoral de Fé e Politica com uma frase de Dom Helder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”.

Foi para a classe com a ideia fixa de ler e conversar com as crianças sobre uma crônica do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade sobre o Natal.

Foi a melhor aula de sua vida.

No dia seguinte, foi à luta. Nunca mais as pessoas comeram ossos.

Nota 1: Leia neste link a crônica de Drummond, “Organiza o Natal”.

Nota 2: Que neste Natal as famílias não chorem suas perdas e mortes.

Um Feliz Natal a todas e todos.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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