Por Ronei Costa Martins Silva
Desde épocas remotas, nossos antepassados buscavam abrigar-se. Visando proteção, instalavam-se em cavernas, depois em pequenas cabanas, originando as aldeias, que garantiriam maior proteção aos grupos sedentários nascentes. A partir de então a cabana, signo de proteção, passou ao longo do tempo a agregar outros significados intangíveis e fundamentais.
Sua descendente mais atual, a moradia é muito mais do que paredes, pisos, telhado, janelas e portas, arquitetonicamente ordenados. Ela transcende sua materialidade, relevando valores imateriais. A casa é a extensão de quem nela habita, ou seja, é o corpo dilatado, revelando nas suas paredes aquilo que somos. É o lugar onde se evita a hostilidade do mundo e por isso mesmo o espaço do despir-se, do desvelar-se, onde o homem, a mulher e a criança encontram refúgio pra revelar-se frágil, dóceis e amorosos. É o primeiro lugar, é onde a criança se reconhece, se estabelece e se relaciona a partir dos espaços habitados.
Basta recuperar nossas memórias de infância e veremos algo surpreendente: a importância da morada. Foi a casa, este espaço seguro e acolhedor, que abrigou as primeiras experiências vividas que nos fizeram ser o que somos hoje. Sem ela, possivelmente seríamos pessoas muito diferentes.
Diante destas razões fica inadmissível aceitar que a nossa sociedade exclua milhões de pessoas deste direito básico para a realização humana. Moradia digna é política pública de primeira necessidade.
Entretanto não basta apenas construir unidades habitacionais. Está em curso uma mudança de paradigma na produção da Habitação de Interesse Social – HIS. Se antes as políticas sociais para habitação social privilegiavam grandes conjuntos habitacionais, atualmente este conceito vem sofrendo uma reformulação a bem da urbanidade.
Sabemos que a maioria das nossa cidades foi constituída a partir da ideia do urbanismo modernista, que estratificava o desenho das cidades a partir de suas funções. Assim, determinada região da cidade ficava reservada para a função de “morar” enquanto outra região era destinada para a função de trabalhar, bem como outras ainda destinadas às demais funções: lazer, comércio, etc. Não é difícil perceber este conceito na maioria das nossas cidades. Limeira, por exemplo, possui esta característica urbana.
Este desenho urbanístico e modernista das cidades, entretanto se revelou profundamente caótico na medida em que impõe aos indivíduos a necessidade de grandes deslocamentos pelo tecido urbano, causando inúmeros transtornos. Basta imaginarmos a mobilidade pendular: pelas manhãs, grande contingente de trabalhadores são obrigados a atravessar a cidade para chegar ao trabalho e no fim do dia retornam para suas casas, tal como o pêndulo de um relógio antigo.
Diversos fatores negativos causados por este desenho urbano podem ser observados, tais como, o tempo desperdiçado nas viagens que poderia ser aproveitado em outras atividades, ou mesmo no trabalho, os congestionamentos (estima-se que 10% do PIB de uma cidade média é perdido nos congestionamentos), as doenças advindas deste modo de vida, a poluição ambiental, oriunda do trafego excessivo, os acidentes de trânsito, além de inúmeras outras consequências indiretas.
Este modelo de cidade já está superado nas reflexões dos urbanistas, entretanto na prática nossas cidades ainda precisam de mecanismos efetivos de política urbana que proponham a readequação dos espaços urbanos a partir dos conceitos contemporâneos. Referimo-nos da multifuncionalidade dos espaços, eliminando de vez a ideia da estratificação por função dos espaços.
O conceito é simples: a função de morar deve coexistir com as demais funções (trabalhar/lazer/comércio) a fim de garantir ao cidadão o pleno acesso aos serviços da cidade sem a necessidade de grandes deslocamentos pelo tecido urbano. Isto por certo, contribuirá para a mitigação da maioria dos problemas elencados no parágrafo anterior desta defesa.
Diante desta reflexão é simples compreender que conjuntos habitacionais de grande concentração de pessoas, tais como o Rubi, em Limeira, que acolhe 900 famílias, não são mais indicados como estratégias adequadas de política habitacional, por uma razão clara: mantém a função de moradia, distante das demais funções, obrigando grande contingente de pessoas se locomover por grandes distâncias para acessar as demais funções oferecidas na pela vida contemporânea. Tal imposição, como já dissemos, aumenta os riscos de acidentes de trânsito, aumenta a poluição urbana, impacta sobre o PIB municipal, e obriga as pessoas a dedicarem parte considerável de dia nos aludidos deslocamentos.
Neste sentido, o que desponta como solução possível para a produção de moradias urbanas é a pulverização de unidades habitacionais em regiões urbanas já consolidadas, com uma oferta das funções de educação, lazer, trabalho e comércio, próximas, de tal modo a diversificar as atividades dos espaços urbanos, facilitar e otimizar a circulação de pessoas, bens e serviços pela cidade e melhorar a qualidade de vida de todos.
Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista e pós graduado em arquitetura e arte sacra. Possui diversas obras de arquitetura sacra espalhadas por São Paulo e outros três estados. Em 2018 foi convidado para presentear o Papa Francisco com uma obra sua, a Cruz da Esperança. Possui onze obras de arquitetura selecionadas para Mostras Nacionais, sendo duas em 2017 e nove em 2019.
Também é pesquisador da máscara do palhaço há 22 anos, tendo atuado em hospitais, presídios e outros espaços de vulnerabilidade social. É pai do Benício.
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