O choro da enfermeira

por Ronei Costa Martins Silva
Estou consternado.  Escrevo tomado por uma visceral revolta que poderá, em algum momento, me levar a cometer excessos nesta carta. Sabemos bem que sob este nível de temperatura emocional o melhor mesmo seria silenciar-me, retornando ao tema quando a serenidade voltasse, mas não conseguirei obedecer tão prudente auto-conselho: escrevo enquanto me vejo submergido num misto de tristeza e revolta ao constatar que somos ingratos!

Quando combatentes de guerra, que colocam suas vidas em risco para proteger suas nações, retornam para suas pátrias, estes são acolhidos em valorosas cerimônias solenes nas quais os referidos heróis da pátria recebem honrarias, medalhas e toda justa homenagem pelo digno serviço  prestado em favor do bem comum. Eis uma situação clara e justa de gratidão social. Mas nós não somos assim. Constatei que somos ingratos.

Vejam só: ontem pela manhã, enquanto acompanhava meu filho, Benício, n’alguns momentos de lazer no Parque da Cidade, pude espiar diálogo aterrador entre uma enfermeira e uma fisioterapeuta. Ambas atuaram na linha de frente da guerra contra a Covid-19, na Unidade de Reverência da Covid – URC, de Limeira. Elas narravam o fechamento da URC, provocado pelos baixos índices da pandemia, e das consequentes demissões. Fiquei estarrecido ao ouvir que ambas foram demitidas de forma sumária e até desumana, sem, sequer terem recebido um único sinal simbólico de gratidão. Uma delas chegou a dizer que após o desligamento, passou três dias chorando.

Não  pude ficar indiferente. Me aproximei das mulheres, afim de me solidarizar e também, desejando saber mais. Eis que elas me disseram que todos os profissionais que lá atuaram foram demitidos da mesma forma. Sem qualquer sinal de gratidão.

Vejam bem, todos sabemos que aquelas profissionais seriam demitidas. Isto por conta de que a estrutura montada obviamente ficaria obsoleta com o fim da pandemia. Sabemos, portanto, que a questão não é a demissão em si. Mas o modo com que o desligamento aconteceu.

Ao observar o desalento daquelas profissionais, senti que falhamos gravemente. Fizemos chorar quem, dias antes, arriscava a própria vida para nos salvar. Fomos ingratos! Terrivelmente ingratos. Estes profissionais não poderiam ser demitidos sem que, antes, fossem congratulados com medalhas e honrarias dignas de seus préstimos em favor da humanidade que reside em Limeira.

A desmobilização da URC era, como disse, óbvia. Mas as guerreiras e guerreiros que lá se empenharam não poderiam sair pela porta dos fundos, como serviçais indignos. O inevitável desligamento deles deveria ser precedido de uma sessão solene, na qual todos pudessem ser honrados pelo município, com medalhas de metal incorruptível, que simbolizasse a eterna gratidão do povo limeirense aos arautos da saúde pública, que não mediram esforços para nos salvar.

Ao contrário  disto,  fizemos os profissionais chorarem ao terem sido solenemente desprezados, no dia seguinte do desejado controle da pandemia. Sinto-me envergonhado por ser um sujeito integrante desta sociedade ingrata.
Nao fomos capazes de reconhecer a justa e imprescindível contribuição destas mulheres e homens que lutaram para nos salvar.

É madrugada enquanto escrevo. Confesso que não consigo dormir. O choro daquela enfermeira me rasga a alma, me arranca a razoabilidade e o sono. Somos ingratos!

Mas a despeito disto, a despeito de nosso erro já escancarado, é urgente que a sociedade limeirense tente reparar tamanha injustiça. É urgente que a sociedade inteira se una em uníssono para reconhecer e agradecer a contribuição dos trabalhadores da saúde. É urgente que o judiciário, o legislativo, o executivo, e todas as autoridades civis, militares e eclesiásticas, que representam a sociedade limeirense, agendem uma sessão solene para oficializar a gratidão do povo desta terra aos combatentes que lutaram na maior guerra que esta geração testemunhou: a luta contra a COVID-19.

Limeira não  pode ignorar o choro daquela enfermeira. Não pode!

Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista e pós graduado em arquitetura e arte sacra. Possui diversas obras de arquitetura sacra espalhadas por São Paulo e outros três estados. Em 2018 foi convidado para presentear o Papa Francisco com uma obra sua, a Cruz da Esperança. Possui onze obras de arquitetura selecionadas para Mostras Nacionais, sendo duas em 2017 e nove em 2019. Também é pesquisador da máscara do palhaço há 22 anos, tendo atuado em hospitais, presídios e outros espaços de vulnerabilidade social. É pai do Benício.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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