Operação Cavalo de Tróia e a Lei nº 14.592/2023

Por Carlos Gideon Portes

Se J.J. Benítez conhecesse o nascedouro da Lei nº 14.592/2023, a obra “Operação Cavalo de Tróia” ganharia um novo título ou, quiçá, um capítulo extra, já com nome determinado: “O jabuti”. A história nos traz novidades, é fato, mas o recorrente vezo que se encontra arraigado aos hábitos congressistas faz repetir, de tempos em tempos, o que vimos acontecer com a conversão da MP nº 1.147/2022 na Lei nº 14.592/2023, que além de ser um absurdo por desrespeitar o processo relativo ao trâmite das medidas provisórias, foi uma afronta ao posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADI nº 5.127/DF.

Embora o foco desta breve reflexão seja a exclusão do ICMS do cálculo dos créditos de PIS e COFINS nas operações de aquisição, na apuração não cumulativa das referidas contribuições, a MP nº 1.147/2022 ao ser encaminhada para votação no Senado Federal, carregou em seu bojo as MPs nº 1.157, 1.159 e 1.163, todas de 2023, cometendo um verdadeiro contrabando legislativo.

Como dito há pouco, o foco destas breves considerações estará vinculado aos efeitos da MP nº 1.159/2023, que restaram convalidados pela Lei nº 14.592/2023, como se fosse o resultado da conversão daquela, e não devesse, sequer, respeito ao princípio da anterioridade nonagesimal, mas chegaremos lá a seu tempo.

O governo federal, desde que o STF definiu que o ICMS não é receita e, portanto, não compõe a base de cálculo das contribuições sociais ao PIS e à COFINS luta em favor do que chama de equilíbrio da balança tributária, e em nome dessa preservação orçamentária colocou vários solavancos tributários no caminho dos pagadores de tributos.

O primeiro ocorreu quando, ainda em 2018, editou a Solução de Consulta Interna COSIT nº 13, determinando que o ICMS a ser excluído das bases de PIS e COFINS era o valor pago e não o destacado nas notas fiscais.

O segundo quando em 2019, consolidou essa aberração normativa no Parágrafo único, do Art. 27, da IN RFB nº 1.911/2019, que restou desconstruída somente em 2021 por meio do Parecer SEI nº 14.483, que esclareceu não ser legalmente sustentável o posicionamento da RFB, mas que só foi extirpada do regramento administrativo com a edição da IN RFB nº 2.121/2022.

É de conhecimento geral, contudo, que o Parecer SEI nº 14.483/2021 foi assertivo no sentido de apontar (como se necessário fosse) o caminho para que o objetivo de colocar um contrapeso no déficit do recolhimento de PIS e COFINS fosse alcançado: a alteração das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03.

Este foi o caminho adotado pelo governo federal, quando com apoio no Art. 62 da Constituição Federal, o Presidente da República adotou a Medida Provisória nº 1.159/2023, com força de lei, para, por meio de seus Artigos 1º e 2º, alterar a redação do Art. 3º, das Leis 10.637/02 e 10.833/03, fazendo incluir o inciso III, ao § 2º, que passou a determinar que o ICMS que tenha incidido sobre as operações de aquisição não daria direito a crédito.

A MP nº 1.159 foi publicada em 12/01/2023 e, em curtas palavras, mesmo tendo sido prorrogada em 30/03/2023, perdeu sua eficácia em 1º/06/2023 por decurso de prazo, mas provocou o efeito almejado, pois a partir de 1º/05/2023 obrigou a todos os pagadores de tributos a excluir o ICMS dos valores das operações de aquisição, reduzindo em 21,95% o crédito a ser descontado da apuração das contribuições ao PIS e à COFINS.

O terceiro solavanco surgiu exatamente no momento em que o Deputado Relator da MP nº 1.147/2022, em adiantado trâmite de análise no Congresso, e já prestes a ser encaminhada ao Senado, resolveu incorporar o texto da MP nº 1.159/2023 ao da MP anterior, como consta no Parecer nº 73, do Senado Federal, verbis:

Os arts. 6º e 7º do PLV incorporam os arts. 1º e 2º da MPV nº 1.159, de 12 de janeiro de 2023. A justificativa do relator da matéria na Câmara dos Deputados é o receio de perda de eficácia da norma. Os dispositivos modificam pontualmente o regime não cumulativo de apuração da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins. O ponto alterado refere-se ao valor do imposto estadual (ICMS) na composição do montante devido relativo às contribuições sociais. Com a modificação do § 3º do art. 1º das Leis nos 10.637, de 2002, e 10.833, de 2003, é estabelecido expressamente em lei que não integra a base tributável das contribuições sociais o valor do ICMS que incidiu nas operações geradoras de receitas. Essa alteração decorre do entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 574.706, submetido à sistemática da repercussão geral, de que o ICMS não deve ser incluído na base de cálculo das contribuições sociais.

Por sua vez, a alteração do § 2º do art. 3º das Leis nos 10.637, de 2002, e 10.833, de 2003, passa a excluir o montante do ICMS que incidiu nas operações de aquisição de mercadorias e serviços sujeitos ao imposto da apuração do crédito para desconto do valor das contribuições sociais devidas.

Apesar da tramitação de duas emendas (51 e 74) no Senado requerendo a supressão do texto que alterava as Leis nº 10.637/02 e 10.833/03 por ser uma limitação que não decorria do julgamento do RE nº 574.706/PR, a própria Senadora apresentou seu voto pela aprovação da MP nº 1.147 e afirmou que foi feito um acordo para rejeitar todas as emendas e aprovar o PLV nº 9/23.

Derivado de um processo inconstitucional, posto que o conteúdo completo da MP nº 1.159/2023 foi inserido no texto da MP nº 1.147/2022 pela motivação narrada no Parecer emitido pelo Senado Federal, promovendo mais uma vez o conhecido ‘contrabando legislativo’ ou as chamadas “emendas jabutis”, a Lei nº 14.592/2023 foi sancionada pelo Presidente da República e foi publicada, excluindo o ICMS do cálculo dos créditos das operações de aquisição e convalidando os atos praticados pela MP Nº 1.159/2023.

Assim, além da inexistência dos requisitos de relevância e urgência, inerentes à possibilidade de adoção de MP, nos termos do Art. 62, da Constituição, e da completa afronta ao julgamento da ADI nº 5.127/DF, pelo STF, posto não haver pertinência temática entre os benefícios do PERSE (MP nº 1.147/2022) e o aumento da carga tributária de PIS e COFINS (MP nº 1.159/2023), a Lei nº 14.592/2023 transporta duas pesadas cargas: a primeira, e mais visceral, a da inconstitucionalidade por ferir o rito de aprovação das medidas provisórias; a segunda, de impor o aumento da carga tributária, como novel legislação, sem respeitar o prazo nonagesimal, que é inerente às contribuições destinadas à seguridade social (§ 6º, Art. 195, CF), posto não ser fruto da conversão da MP nº 1.159/2023.

Se voltarmos uns vinte anos na história dos ataques por vírus, no Brasil, nos depararemos com as primeiras ‘infecções de computadores’ por um programa que restou comumente conhecido como Cavalo de Tróia, que a exemplo da mitologia grega, se tratava de um programa com aparência segura que instalava um malware que danificava ou permitia o controle de equipamentos com o objetivo de destruir ou ‘sequestrar’ bancos de dados.

Além do desrespeito à sistemática constitucional do trâmite da MP, e da afronta jurisprudencial, a confusão causada pela pseudo conversão da MP nº 1.159/2023, que tal como um malware transportado por um Cavalo de Troia foi inserida na MP nº 1.147/2022 e convertida na Lei nº 14.592/2023, tem dificultado até que o Poder Judiciário se posicione assertivamente quanto à inconstitucionalidade do referido diploma legislativo, julgamento que se espera como resultado da aplicação da boa técnica, bem como em relação à necessidade da observação do prazo nonagesimal, caso malogre a fulminação do ato ilegal.

Um prejuízo instalado contra os pagadores de tributo e mais uma luta árdua, como todas as demais relativas ao Direito Tributário, mesmo que alguns teimem (jocosamente ou por desconhecimento técnico) em dizer que o Brasil é o paraíso dos que labutam nessa área.

Carlos Gideon Portes é advogado do escritório Cláudio Zalaf Advogados Associados.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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