Oh loco meu! Privacidade, LGPD e o transplante do Faustão

Por Marcelo Crespo

O Brasil acompanhou com muita atenção as notícias sobre o estado de saúde e o transplante de coração do apresentador Fausto Silva, mais conhecido como Faustão. Para além da celebração pela cirurgia bem-sucedida, uma questão ética e jurídica permeou o episódio: a identificação pública do doador do órgão. Teria havido violações à LGPD neste episódio? Houve outras violações? Se sim, quem as cometeu?

Desde o início de agosto o apresentador estava internado em hospital na cidade de São Paulo para realizar a compensação clínica de insuficiência cardíaca, conforme se noticiou aqui e aqui. Poucos dias após o anúncio da sua internação, novas informações davam conta de que Faustão precisaria ser submetido a um transplante de cardíaco, o que foi noticiado aqui e houve até mesmo matérias explicando como funciona a fila do transplante, como se vê aqui.

Assim que divulgado que Faustão precisaria de transplante e, logo após a realização do mesmo, direto da “esgotosfera” da internet pode-se verificar o surgimento de boatos sobre como ele teria “furado” a fila. Diversas reportagens explicaram como funciona o sistema nacional de transplantes, como está aqui. E o boato foi até mesmo checado por um site especializado neste tipo de análises e concluiu que não há qualquer elemento que possa minimamente indicar que houve favorecimento ou conduta indevida privilegiando o apresentador. De todo modo, transplantes feitos em desacordo com a lei podem constituir crime (arts. 14 a 20 da lei 9.434/97). Para quem ainda tiver alguma dúvida sobre isso, as diretrizes sobre como se dão os transplantes estão no regulamento da referida lei, o Decreto 9.174/17, que institui o Sistema Nacional de Transplantes.

Superada a questão do absurdo boato e com o apresentador em recuperação, passou-se a noticiar sobre a identidade do doador do coração ao Faustão. E, em razão da notoriedade do apresentador, muitos veículos puseram-se a acompanhar sua rotina de internação e recuperação de perto, sendo difícil apontar onde, em primeiro lugar, se noticiou o nome do doador do órgão.

Em um momento forte emoção Faustão agradeceu à família do doador publicamente. “Quero fazer um agradecimento especial ao José Pereira da Silva, pai do Fábio, que teve uma grandiosidade incrível, uma generosidade absurda, e proporcionou que eu continuasse vivo”, disse o apresentador.

Porém, esse ato de gratidão levanta uma série de questões sobre a regulamentação e a ética da doação de órgãos no Brasil.

Como essa informação (do doador) se tornou pública? Quem primeiramente identificou o doador? Com quem esta pessoa compartilhou essa informação?

Bem, no Brasil a lei 9.434/97 “dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências”, basicamente discorre sobre a disposição em vida e também post mortem de órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante. E, como dito acima, é o o Decreto 9.174/17 que regulamenta a lei.

O decreto tem início declarando que a disposição de órgãos é ANÔNIMA e GRATUITA (Art. 1). Mais precisamente o art. 52 dispõe que: ‘Na hipótese de doação post mortem, será resguardada a identidade dos doadores em relação aos seus receptores e dos receptores em relação à família dos doadores’.

Dito isto, é inquestionável que o Decreto nº 9.175/2017, que regulamenta a Lei dos Transplantes de Órgãos, é claro sobre a “disposição gratuita e anônima de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano” e que “será resguardada a identidade dos doadores em relação aos seus receptores e dos receptores em relação à família dos doadores“.

Não há qualquer ressalva na lei que considere exceções em razão do receptor ou do doador serem pessoas públicas, como é o caso do Faustão. Embora o texto não estabeleça sanções específicas para a divulgação das identidades envolvidas, ele enfatiza que esses dados devem ser preservados. A divulgação pública do doador e do receptor não é permitida por questões éticas, em especial para que nenhuma das partes acredite que deva algo à outra, inclusive financeiramente.

Além disso, há um outro aspecto, que é o do possível vínculo emocional decorrente do conhecimento das partes envolvidas. Imagine-se, por hipótese, que o transplantado venha a falecer. Para a família do doador isso poderia significar ainda mais sofrimento, algo como uma segunda morte.

Mas e a LGPD com isso tudo? Bem, a LGPD não traz qualquer dispositivo expresso sobre sua aplicação a pessoas falecidas, embora tivéssemos como parâmetro o GDPR, que no Considerando 27 excluiu estes dados do amparo legal (mas garantiu aos Estados-membros a possibilidade de criar regras para o tratamento destes dados).

Felizmente, para pacificar o tema aqui no país, a Coordenação-Geral de Fiscalização – CGF da ANPD publicou em março de 2023 uma Nota Técnica posicionando-se pela não incidência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD no caso de tratamento de dados de pessoas falecidas. Neste caso, portanto, a divulgação do nome do doador não constituiria uma violação à lei.

Isso, porém, não resolve as questões éticas e legais, tendo-se em vista que nome dos familiares foram divulgados e circularam livremente em diversas matérias jornalísticas. Vale lembrar que o art. 4 da LGPD determina que a lei não se aplica caso o tratamento realizado seja para fins exclusivamente jornalísticos. Mas para a aplicação desta exceção seria o caso de a imprensa ter feito o cruzamento das informações até se concluir sobre o doador e sua família. E não está claro como isso de fato aconteceu. Tudo leva a crer que a identificação aconteceu por meios não oficiais, possivelmente pela imprensa que monitorou óbitos e doações no final de semana dos fatos. Há um indício de que isso teria sido descoberto pela TV Record, porque há uma fala registrada em uma reportagem do pai do doador no seguinte sentido “Tudo leva a crer que o coração foi [para o Faustão]. Pelo horário, pelo momento em que o helicóptero pousou lá, eu acho que foi”.

A grande questão que fica é: ainda que o tratamento de dados pessoais e do doador não tenham infringido as leis aplicáveis, a divulgação foi uma atitude ética?

O tema é complexo e polêmico porque não se limita à proteção de dados pessoais ou o resguardo do doador. Como dito, há uma clara intenção da lei de que as identidades sejam preservadas para proteger a todos. Afinal, o ato de doação é muito digno e deve ser enaltecido. Mas não seria menos digno se não soubéssemos quem foi a família e o doador que deram uma segunda chance de vida ao Faustão. Seria muito importante que esses tipos de questões éticas fossem debatidos em fóruns não apenas jurídicos, mas jornalísticos também.

Marcelo Crespo é professor e coordenador do curso de Direito da ESPM e especialista em Direito Digital. É doutor e mestre em Direito Penal (USP), é Certified Compliance and Ethics Professional International (CCEP-I) pela Society of Corporate Compliance and Ethics. Possui Certificação Internacional em Gestão e Negócios (XBA – Exponential Business Administration) pela StartSe e Nova School of Business and Economics.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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