Nossa peculiar ditadura

Por Saad Mazloum

Houve um tempo em que nós, promotores de Justiça, éramos chamados para botar na cadeia assassinos, estupradores, traficantes.

Mas quem em sã consciência poderia imaginar que seríamos, um dia, incentivados a acusar alguém por “crime de trabalhar”. Que seríamos testados a assistir impassíveis um pai de família ver definhar sua renda, seu patrimônio, sua dignidade.

Já li obra de ficção que falava de um estranho tempo do futuro, em que uma espécie de “bombeiro” era chamada, não para apagar incêndios, mas para lançar jatos de fogo e queimar, a exatos 451 graus fahrenheit, os livros e as casas de quem ousasse ler e instruir-se. Naquele cenário distópico, incendiavam-se idéias em nome da paz.

Nos dias que correm, uma legião de “bombeiros” está sendo conclamada por líderes bem aprumados e outros poucos de capa preta que mandam, a torto e a direito e em nome da ciência (ou sei lá de quê), lançar jatos de estupidez sobre a dignidade de quem ousa dizer o que não convém ou apenas botar um prato de comida na mesa para os filhos. Não há criatividade, não há sensatez, não há investimento necessário.

Opta-se pelo mais prático e econômico.

E assim seguimos dia após dia, dóceis e calados, construindo por ação de uns e omissão de outros uma realidade que vai imitando o que era uma simples história de ficção.

Por medo do fascismo, seguimos todos construindo uma ditadura própria e bastante peculiar, não aquela que conhecíamos – aquela que vem de cima para baixo, verticalizada, imposta por um milico qualquer da Banânia.

Nossa ditadura é pior. Ela é horizontal, capilarizada, cotidiana, de nós contra nós mesmos. Cuidamos de exercer um patrulhamento ideológico cruel sobre o cara ao nosso lado, em quem ele vota, sua opção política, suas crenças religiosas e até mesmo suas “crenças científicas”. E então o cancelamos, a depender do que se revelar.

E assim um dia seremos todos cancelados.

Um dia olharemos para trás e será inacreditável pensar a loucura que foi vivenciar estes tempos tão estranhos. Será isso tudo apenas um pórtico para um mundo melhor? Mas que o Criador nos livre de um dia olhar o presente e perceber que tudo está como o passado e com igual perspectiva de futuro.

Saad Mazloum é Procurador de Justiça e membro eleito do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo.

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