Mercadão, 1 ano: a espiral de fumaça que rasgou o céu azul e o coração dos limeirenses

Por Rafael Sereno, especialmente para o DJ *

“Acho que tá pegando fogo no Mercadão…”

A frase disparada de algum lugar da casa pela minha esposa chamou-me a atenção no momento exato em que eu desligava a TV. Era início de tarde de um domingo ensolarado e, como de hábito, eu terminava de assistir o Esporte Espetacular para, junto com ela, ir almoçar na casa do meu sogro. Como um domingo de Páscoa comum.

Não foi um domingo de Páscoa comum.

Fazia pouco mais de três meses que eu havia deixado a redação da Gazeta de Limeira. Todo jornalista nunca deixa de ser jornalista, mesmo deixando uma redação após tantos anos. E todo repórter jamais deixa de ser repórter diante do que chamamos de notícia. De imediato, peguei o celular que estava atirado ao sofá e fui até o quarto que funciona como um pequeno escritório.

“Essa fumaça é do Mercadão ou da rua de trás?”, ela perguntou.

A janela do nosso apartamento sempre permitiu uma vista bela do Mercado Modelo de Limeira. Inaugurado em 29 de junho de 1958 na gestão do então prefeito José Adriano Lopes Castello Branco, que conheci de perto quando ele esteve em Limeira em 2008 na ocasião das comemorações dos 50 anos do local e visitou a Redação da Gazeta de Limeira, o Mercadão, de longe, mostrava sua antiguidade em telhas cinzas. Naquele domingo, uma pequena fumaça preta, saída de uma bola de fogo ainda minúscula, se exibia na lateral direita da construção. Forcei a vista, querendo acreditar que aquele princípio de incêndio estivesse em alguma fiação da rua Barão de Cascalho.

Mas não. A fumaça, ainda pequena, estava sobre o Mercadão.

“Liga para o 193”, dissemos um para o outro. Mais rápida, ela tentou. Ocupado. Foi repetindo, até que atenderam. “É no Mercadão, né? Já estamos sabendo e estamos a caminho”, disse um atendente. Calculo que era por volta de 13h05. A fumaça crescia. Tomava conta da lateral direita do Mercadão. Com o aumento das chamas, a coluna de fumaça se tornava cada vez mais visível. Com o celular, captei a enorme espiral que se formava à minha frente rasgando o céu azulado.

O primeiro carro do Corpo de Bombeiros chegou. Logo depois, um segundo veículo. A coluna de fumaça não parava de crescer. Instinto de jornalista, acessei o Facebook e escrevi um texto curto. Não era no formato de notícia ao qual estava habituado, mas busquei expressar, naquele momento, o que via, aquilo que podia alertar e um desejo pessoal:

“Mercadão de Limeira em chamas. Evitem a região. E orem pelos trabalhadores, comerciantes, moradores e bombeiros!”

A mensagem foi acompanhada das imagens que captei durante a evolução da fumaça. De imediato, colegas jornalistas começaram a replicar as fotografias que davam uma ideia do incêndio em curso enquanto muitas famílias curtiam o almoço de Páscoa. Zelosos, os bombeiros interditaram as vias próximas. As chamas crepitavam sem parar e tomavam conta de mais da metade do prédio.

De longe, vi pessoas parando seus veículos e correndo até o local para o instinto mais nobre do ser humano: ajudar, não importa de qual maneira. E, com o avanço das chamas, havia um problema extra. O prédio do Mercadão ficava colado em uma sequência de imóveis localizados na Rua Barão de Campinas, a face esquerda do Mercadão. É um local tradicionalmente ocupado por comércios, mas, e se morassem pessoas em algumas casas, como elas ficariam?

Populares e bombeiros corriam de porta em porta pedindo para que as pessoas deixassem os imóveis o mais rápido possível diante da fúria ígnea que se projetava sobre elas. Os Bombeiros, já com reforços redobrados, se articulavam de forma hercúlea para conter as chamas. Entre 13h30 e 14h, as redes sociais foram tomadas por imagens das chamas de todos os ângulos possíveis (entre elas, as que fiz) e, principalmente, por lamentos e súplicas para que vidas fossem preservadas e o prejuízo, aquela altura incalculável, reduzido.

As horas seguintes foram desesperadoras. Vi comerciantes chegando e chorando, se abraçando uns aos outros. Autoridades, entre elas o prefeito Mario Botion e seus secretários, compareceram ao local. A imprensa acompanhou os trabalhos dos Bombeiros na fatídica tarde de Páscoa de 2020. Fazia um mês que a pandemia havia chegado no Brasil e também em Limeira, trazendo prejuízos ao comércio. Os lojistas do Mercadão passariam por mais uma dura prova, com o trabalho de anos reduzido às cinzas. E Limeira choraria, naquele dia e nos seguintes, pela destruição quase completa daquele lugar que foi palco de tantas histórias.

Como qualquer jornalista diante de um fato histórico (e profundamente triste), acompanhei, de longe, o fogo ser contido. Não houve óbitos. As pesssoas que estavam nos prédios ao lado conseguiram sair a tempo. As chamas não avançaram além do local onde se erguia o Mercadão.

O post com meus registros daquele dia teve mais de 180 compartilhamentos, 270 reações e dezenas de comentários. Autorizei o uso das imagens a vários colegas da imprensa que solicitaram. Não fui, por óbvio, o primeiro a noticiar o incêndio no Mercadão. Mas sei que as imagens que divulguei revelaram, para muita gente, o tamanho da dimensão que se abatia num patrimônio querido dos limeirenses em um dia que se prometia tranquilo.

Ainda hoje, quando miro o vazio aberto no Centro de Limeira no lugar onde ficava o Mercadão, penso nas dificuldades dos lojistas que, passado um ano, seguem sem ter o espaço que cultivaram por anos. Penso nos corredores alegres onde se misturavam pessoas de todas as classes. Nas pessoas que iam ao local pegar uma lembrancinha de aniversário, ração para o cachorro, bolsa ou calçados novos, um bolo de chocolate “daqueles” para a sobremesa do final de semana, ou simplesmente saborear um pastel de carne ou queijo, comentar o jogo da rodada…

Viver um dia comum de Mercadão no interior, enfim!

Como faz falta….

*Rafael Sereno é jornalista, com experiência de 15 anos na imprensa local. É a primeira vez que ele relata, em texto, o que viu e sentiu após um incêndio que crescia diante de seus olhos

Justiça de Limeira ainda aguarda laudo sobre Mercadão

Um ano após o incêndio que consumiu o Mercado Modelo de Limeira, o processo que apura as circunstâncias do incêndio ocorrido em 12 de abril de 2020 está em fase de diligências policiais.

No início deste mês, o Ministério Público concordou e a Justiça determinou o retorno dos autos ao delegado Francisco Paulo Oliveira Lima, que conduz a investigação. Em janeiro, a equipe da perícia criminal informou o delegado que o laudo oficial encontra-se em fase final de revisão.

Seguem em curso as tratativas da Prefeitura de Limeira com a Associação dos Lojistas do Mercado Modelo. Questões envolvendo os projetos arquitetônico, estrutural, metálico, elétrico, hidráulico, combate a incêndio e também orçamentos estão em discussão. A intenção é reconstruir o prédio no mesmo local, cuja entrada pela Rua Sete de Setembro foi a única não atingida pelas chamas.

O Mercadão tinha competências divididas e, em âmbito jurídico, é um impasse ainda a ser resolvido – as vias internas do Mercadão eram públicas, mas os boxes, particulares. Após a resolução da parte jurídica, o projeto do novo espaço será aprovado em conjunto com os comerciantes. (Renata Reis).

Fotos: Rafael Sereno/Arquivo Pessoal

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