O procurador da Câmara Municipal de Limeira, José Carlos Evangelista foi o autor do recurso acatado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que reverteu decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e declarou constitucional a norma prevista no artigo 5º da Lei Municipal 3.961/04 que prevê que os contratos firmados pela Administração Direta e Indireta com empresas prestadoras de serviços continuados deve constar cláusula prevendo a reserva de 20% dos cargos do total de funcionários para afro-brasileiros.
Em entrevista ao DJ, Evangelista relatou que percebe muita resistência em relação à intervenção legislativa municipal, sobretudo, aquela originária do Poder Legislativo, em segmentos do Poder Judiciário e, em menor escala, do Ministério Público. “A frustração ocorre exatamente quando os Poderes radicados no município adotam uma medida legislativa com o intuito de atender demandas com peculiaridade e nuances locais, muitas vezes resultado de amplo processo de negociação com lideranças e instituições representativas da comunidade, e o Poder Judiciário substitui as escolhas feitas a partir da legitimidade ancorada na soberania popular com fundamento em sua discricionariedade hermenêutica”.
Sobre a vitória no STF e a competência legislativa dos municípios, ele concedeu a entrevista a seguir:
Qual o significado para o Município defender uma legislação local, que chegou a ser declarada inconstitucional por um tribunal e é declarada válida pelo Supremo, definitivamente?
Trata-se da defesa de nossa autonomia municipal, no marco jurídico-normativo reconhecido pela Constituição Federal, especialmente, em seus aspectos legislativos e político-administrativos. Dado tal reconhecimento, torna-se indiscutível a competência legislativa municipal para instituir políticas públicas para os segmentos mais vulneráveis da comunidade, com fundamento em seu interesse local e na possiblidade de suplementar a legislação federal e estadual no que couber.
Quanto à importância da decisão do Supremo Tribunal Federal na matéria, além da correção de um equívoco do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em sua apreciação dos limites da competência legislativa dos municípios, possui a aptidão para pacificar a matéria e trazer segurança jurídica para aqueles que por dever de ofício devem aplicar a legislação vigente.
De modo especial, me parece que a decisão contribui para fazer justiça para os membros do segmento por ela reconhecido.
Qual impacto desta decisão no âmbito das ações afirmativas e sua evolução na jurisprudência brasileira?
De mero reforço e confirmação. Já são inúmeras as decisões do STF no sentido de reconhecer a constitucionalidade de políticas públicas instituídas no plano dos três Poderes, e de todas as esferas da Federação (União, Estados, Distrito Federal, e Municípios).
A peculiaridade da presente decisão diz respeito ao reconhecimento da possibilidade de utilização de um extraordinário instrumento de articulação entre o âmbito público e o privado (procedimento de licitação) para a articulação de políticas compensatórias de discriminação positiva, a partir de iniciativa legislativa municipal.
A repartição de competências feitas pela Constituição é acusada, muitas vezes, de limitar a iniciativa de vereadores na propositura de leis, com protagonismo em excesso do Executivo. Entende que há restrições em excesso?
Em meu entendimento, o sistema de divisão de competências entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, no âmbito do processo legislativo brasileiro, é bastante equilibrado – e até sofisticado.
O problema é a interpretação de tal sistema, introduzido pela Constituição Federal de 1988, por uma cultura jurídica bitolada pela memória da repartição de competências das Constituições anteriores, que não reconheciam o Município como parte integrante do pacto federativo, destituído de autonomia político-administrativa (a lei orgânica dos municípios era atributo das Assembleias Estaduais), e com competências legislativas muito limitadas – visto que, ausente à competência legislativa suplementar hoje prevista no inciso II, do art. 30, da CF/88.
Neste contexto, reforçado pela centralização do poder junto ao Executivo no período autoritário, que teve sua competência legislativa estendida ao máximo por meio do Decreto-Lei e por extenso rol de matérias sujeitas à sua reserva de iniciativa; boa parte dos operadores jurídicos e (até) mesmo lideranças parlamentares, quedaram-se em estado de apoplexia, de profunda confusão teórica e conceitual, em face do novo texto constitucional.
Sendo assim, segmentos expressivos das Procuradorias Jurídicas do Executivo e (até) do Legislativo, bem como do Ministério Público e do Poder Judiciário, de um modo geral, continuaram enxergando as limitações dos sistemas constitucionais pretéritos, insensíveis às inovações trazidas pela Constituição de 1988, chancelando como vício de iniciativa matérias em relação às quais nem o artigo 61 da CF/88, nem os Regimentos Internos das Câmaras Municipais, definiam como privativas do Chefe do Poder Executivo – como é o caso daquelas referentes à instituição de políticas públicas, por exemplo.
Todavia, no plano jurisprudencial, tal situação ficou substancialmente esclarecida e pacificada a partir da decisão prolatada pelo Ministro Gilmar Mendes, junto ao Recurso Extraordinário nº 878.911/RJ:
Recurso extraordinário com agravo. Repercussão geral. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade estadual. Lei 5.616/2013, do Município do Rio de Janeiro. Instalação de câmeras de monitoramento em escolas e cercanias. 3. Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. Competência privativa do Poder Executivo municipal. Não ocorrência. Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos. 4. Repercussão geral reconhecida com reafirmação da jurisprudência desta Corte. 5. Recurso extraordinário provido.
O interesse local, que norteia a atuação legislativa dos municípios, é aproveitado corretamente por executivos e legislativos municipais? O que falta, em seu entendimento, para termos um protagonismo maior dos Municípios na edição de leis relevantes sem o receio de criar expectativas frustradas posteriormente no Judiciário?
O quadro é de enorme complexidade, em face da multiplicidade de interesses contraditórios que se articulam em torno desses dois Poderes, e das dinâmicas que interferem a partir de tais interesses e contradições, no desenvolvimento do processo legislativo municipal. Percebo muita resistência em relação à intervenção legislativa municipal, sobretudo, aquela originária do Poder Legislativo, em segmentos do Poder Judiciário e, em menor escala, do Ministério Público.
A frustração ocorre exatamente quando os Poderes radicados no município adotam uma medida legislativa com o intuito de atender demandas com peculiaridade e nuances locais, muitas vezes resultado de amplo processo de negociação com lideranças e instituições representativas da comunidade, e o Poder Judiciário substitui as escolhas feitas a partir da legitimidade ancorada na soberania popular com fundamento em sua discricionariedade hermenêutica.
Obviamente, não se quer aqui dizer que a atuação do Poder Judiciário, que uma vez provocado, declara a inconstitucionalidade de uma lei municipal, seja arbitrária, infundada ou injusta. De um modo geral tais decisões são corretas, resguardam as disposições normativas previstas na Constituição Federal e Estadual, mas ainda é significativo (mesmo que minoritário) o número de decisões, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, desfavoráveis à autonomia municipal e à iniciativa legislativa parlamentar em desconformidade com o novo marco jurídico-normativo definido pela Constituição Federal de 1988.
Durante a pandemia, o STF reconheceu e deu o protagonismo a Estados e Municípios na elaboração de iniciativas próprias, exaltando a competência suplementar. O que é esse tipo de competência e como avalia os efeitos desse entendimento do Supremo em todo o país?
O entendimento do Supremo Tribunal Federal com relação às responsabilidades e competências dos entes federados em face da pandemia está situado no mesmo plano jurídico-normativo reconhecido no Recurso Extraordinário de que aqui falamos, fundado sobre os princípios do federalismo cooperativo e da subsidiariedade, e estão em plena conformidade com os novos marcos fixados pelo constituinte originário de 1988, como se pode observar com clareza, por alguns trechos da decisão do ministro Edson Fachin, que abaixo transcrevemos a título de conclusão:
Repartir competências compreende compatibilizar interesses para o reforço do federalismo cooperativo em uma dimensão de fato cooperativa e difusa, rechaçando-se a centralização em um ou outro ente a fim de que o funcionamento consonante das competências legislativas e executivas otimizem os fundamentos (art. 1º, da CRFB) e objetivos (art. 3º, da CRFB) da República.
Assim, é preciso reconhecer, no âmbito da repartição constitucional de competências federativas, que o Município, por exemplo, desde que possua competência para matéria, detém primazia sobre os temas de interesse local, nos termos do disposto no art. 30, I, da CRFB. De igual modo, Estados e União detêm competência sobre os temas de seus respectivos interesses, nos termos dos parágrafos do art. 24 da CRFB. Há, dessa forma, um direcionamento das ações de governo do ente local para o nacional, naquilo que José de Oliveira Baracho vislumbrou como sendo o princípio da subsidiariedade do federalismo brasileiro.
Ressalte-se, assim, que a assunção de competência pelo ente maior deve fundar-se no princípio da subsidiariedade, ou seja, na demonstração de que é mais vantajosa a regulação de determinada matéria pela União ou pelo Estado, conforme for o caso. Trata-se, portanto, de privilegiar a definição dada pelo legislador, reconhecendo que eventual lacuna deve ser vista como possibilidade de atuação dos demais entes federativos, não cabendo ao poder judiciário, à míngua de definição legislativa, retirar a competência normativa de determinado ente da federação, sob pena de tolher-lhe sua autonomia constitucional.
Ademais, a existência de compatibilidade entre a atuação legislativa municipal e a jurisprudência desta Corte no tocante à elaboração de políticas públicas consentâneas com as denominadas ações afirmativas sugerem nítido espaço para que os municípios, próximos dos dilemas das realidades locais, exerçam a competência legislativa suplementar a eles atribuída pela Constituição (art. 30, I e II, CF).
Foto: Câmara Municipal de Limeira
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