Anatomia de Uma Queda: O poder da palavra

Por Farid Zaine
@farid.cultura

Justine Triet entra para o seleto grupo de diretoras de cinema mundialmente consagradas, através do sucesso de público e crítica do seu mais recente longa, “Anatomia de Uma Queda”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado em 5 categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Direção. O nome da diretora e roteirista francesa já pode ser colocado ao lado de feras como Jane Campion, Kathryn Bigelow, Greta Gerwig, Chloe Zhao , Emerald Fennell, Sophia Coppola e Lina Wertmüller, só para citar as poucas diretoras indicadas ao Oscar nessa categoria.

Todas as atenções dedicadas a Justine Triet são plenamente justificáveis: “Anatomia de Uma Queda” é uma obra impactante, tanto pelo seu roteiro perfeito quanto pelas atuações do elenco e pelo esmero técnico, onde se destaca a difícil e bem resolvida edição.

“Anatomia de Uma Queda” chega como um novo e instigante modo de se conduzir um “filme de tribunal”. A partir de um fato  –  a morte de um homem após queda do alto de uma casa de campo no meio da neve -, vemos desenrolar-se uma trama construída principalmente através de  palavras. A queda em questão é a de Samuel (Samuel Theis), marido de Sandra (a excepcional Sandra Hüller), uma escritora de origem alemã, e pai de Daniel (Milo Machado Graner), menino de 11 anos praticamente cego. Como durante a suposta queda estava em casa apenas o casal, Sandra é tomada como suspeita e levada a julgamento. Aí entra o grande mérito do filme, seu roteiro e sua montagem: através das palavras de Sandra, do promotor, do advogado de defesa, das falas das testemunhas, e principalmente do depoimento do pequeno Daniel, o público vai formando sua opinião a respeito do acontecido. Nenhuma cena explícita da morte de Samuel  é mostrada, apenas seu corpo caído na neve,  o que obriga o espectador a não perder uma só palavra do que é dito no julgamento, e o que é visto ou ouvido em reproduções da cena da possível queda, croquis e gravações de áudio de brigas do casal. Todas as fases do julgamento nos levam, sobretudo, à relação entre Sandra e Samuel, suas discussões acaloradas sobre o casamento e sobre o acidente que deixou Daniel com deficiência visual quase total.

Minuciosamente tecido, o roteiro tem ricos diálogos , debates e sequências que só fazem aumentar, à medida que o julgamento prossegue, a inquietação e a ansiedade do público para com o desfecho.

Como sempre, num julgamento sem provas materiais, a verdade será construída pelo poder de persuasão de pessoas com o domínio da palavra e pelos apelos emocionais dos depoimentos.

“Anatomia de Uma Queda” entra de imediato para a lista dos grandes filmes de tribunal. Acaba o julgamento, acaba o filme, mas na nossa cabeça permanece um tribunal que ainda não deu seu veredito. Aí também, mais um ponto para Justine Triet.

“Anatomia de Uma Queda” recebeu 5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Melhor Direção,  Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original e Melhor Edição. Estranhamente não foi o indicado da França para representar o país na categoria de Melhor Filme Internacional, escolha que ficou para “O Sabor da Vida”, com Juliette Binoche, que figurou entre os 15 semifinalistas mas não chegou à lista final dos 5 indicados. A França, que não vence nessa categoria desde 1993, quando “Indochina” levou a estatueta, perdeu uma ótima chance, praticamente “entregando” o Oscar para o Reino Unido, por “Zona de Interesse”. Consta que, ao ganhar a Palma de Ouro em Cannes, Triet  tenha causado incômodo ao Comitê que escolhe o representante do país, por ela ter feito duras críticas à política cultural do governo de Emmanuel Macron. Uma pena. Contudo, se levar algum dos Oscars a que está indicado, “Anatomia de Uma Queda” não deixará de colocar o cinema francês sob os holofotes do mundo.

Anatomia de Uma Queda  (Anatomie D´Une Chute, França, 2023) – filme de Justine Triet, com Sandra Hüller – Em cartaz nos cinemas

Cotação: *****ÓTIMO

Imagem: Divulgação

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