A Lei do Superendividamento no contexto da pandemia

Por Kaio César Pedroso

Conforme disposto no Projeto de Lei (PL) 1.805/2021, o propósito da referida lei foi o de “aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”, implicando em alterações no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Estatuto do Idoso.

Ocorre que, ainda no ano de 2019, a Serasa Experian divulgava relevante pesquisa, apontando que naquele ano havia 63 milhões de inadimplentes no Brasil (março de 2019), quantitativo este que representava então “40,3% da população adulta do país”.

Entretanto, foi a partir da pandemia ocasionada pelo coronavírus que maiores movimentações pela aprovação do PL vieram a ocorrer, sendo ele considerado até mesmo como a “saída pós-pandemia para o Brasil”.

Fato é que, segundo dados obtidos a partir da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios COVID-19 (PNAD COVID-19), verifica-se em meio à população uma taxa de desocupação da ordem de 14,4%, dado este que se revela ainda mais preocupante, considerando que 41% dos domicílios recebem auxílio emergencial, além do que, houve uma expressiva redução nos rendimentos dos entrevistados, da ordem de 19,6%.

Resta claro, portanto, que a taxa de desocupação e a redução do auxílio emergencial levaram a expressiva impontualidade nos pagamentos mensais dos financiamentos e empréstimos, agravando ainda mais a situação econômica do país.

Assim, diante deste quadro, há de se questionar se a Lei do Superendividamento seria a solução efetiva para fins de regular a solução entre credores e devedores, superando, quem sabe, esta situação presente de crise.

Em suma, as alterações promovidas pela nova lei podem ser alocadas, como o próprio preâmbulo da lei deixa claro, em prevenção e tratamento do superendividamento.

Pois bem, segundo a lei, considera-se superendividamento “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial (…)”, ressalvadas as hipóteses de fraude e má-fé (parágrafo primeiro do art. 54-A).

Noutro ponto, a prevenção se dá com base na imposição de deveres informacionais (especialmente arts. 4º, IX, 6º, XIII, 54-B e 54-D) e na criação de novas práticas e cláusulas abusivas (especialmente arts. 54-C, 54-D, parágrafo único e 54-G).

É claro que os deveres informacionais são bem vistos em razão de sua menor interferência nas relações havidas entre particulares, porém, são tidos como técnicas que pouco servem de ajuda aqueles consumidores de baixa.

Evidente que alguns dispositivos merecem destaque, em especial as disposições contidas nos arts. 54-B, que trata dos deveres informacionais nos contratos de crédito e venda a prazo, bem como no 54-C, que apresenta importantes limitações publicitárias, especialmente à luz das descobertas da denominada Economia Comportamental.

Destaca-se ainda que a sanção para o descumprimento das obrigações informacionais revela-se extremamente severa, podendo “acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor”, conforme o art. 54-D, parágrafo único.

É certo que referido dispositivo incitará inúmeras discussões quanto aos critérios de revisão dos contratos, assim como em relação a possível elevação de preços dos produtos e a redução dos juros dos financiamentos como forma de adequação do mercado à nova legislação especial.

Outrossim, a Lei do Superendividamento cria uma espécie de “Recuperação Judicial” do Consumidor, na qual ao devedor, pessoa natural, será permitido apresentar um plano de pagamento a seus credores, limitando-se a discussão aquelas obrigações decorrentes de eventual relação de consumo (art. 104-A). Referida medida terá inclusive caráter impositivo de um procedimento judicial no qual a ausência do credor implicará em “suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora”, além de “sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida” em determinadas condições (art. 104-A, §2º).

Revela-se ainda mais impactante a possibilidade de ampla revisão judicial de contratos na hipótese de insucesso negocial, situação na qual “o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório (…)” (art. 104-B).

É claro que a aludida medida desde já se mostra polêmica, já que incentiva, ao menos nos contratos de financiamento, o aumento do preço do produto e a redução dos juros nominais. Ademais, adianta-se a possibilidade do surgimento de discussões a respeito da ausência de critérios nas revisões judiciais, pelo que, necessário se faz rememorar a discussão havida no Recurso Especial 402.261/RS, no qual se debateu a ausência de critérios objetivos na revisão judicial de taxas de juros.

Em suma, a Lei do Superendividamento trouxe consideráveis alterações ao CDC, sendo que as referidas inovações provavelmente promoverão uma resposta do mercado em sua precificação.

Por fim, em que pese a intenção positiva do legislador, é provável que a nova legislação não apresentará uma solução definitivas para os problemas que já estão sendo enfrentados pelos consumidores no atual contexto de pós-pandemia, considerando que o problema em si encontra-se mais relacionado à renda propriamente dita, sem a qual não é possível renegociar qualquer dívida e tampouco pagar o que se deve.

Kaio César Pedroso é advogado

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