Pandemia e trabalho: um guia para entender as principais discussões sobre leis e a realidade

Home office, sistema híbrido, redução de jornada e salário, direito à desconexão. Com a pandemia do coronavírus, o mundo corporativo e as relações trabalhistas passam por intensas transformações culturais com a mistura destes e outros temas. São tantas situações inéditas que as omissões na legislação levam os tribunais a interpretações para realidades em processo de mudança e adaptações constantes.

Após mais de 1 ano de pandemia, como o direito do trabalho evoluiu nestas questões? Para falar sobre estas mudanças e interpretações, a advogada Ana Maria Azenha, do escritório Rafael Rigo – Sociedade de Advogados, explica os principais dilemas em discussão no direito do trabalho na pandemia.

Passado mais de 1 ano de pandemia impactando as relações trabalhistas, que saldo tivemos em relação às adaptações na legislação? Há muito a ser feito para que os direitos trabalhistas fiquem plenamente assegurados?
Os eventos inesperados, como o estado de calamidade pública em decorrência da pandemia da Covid-19, promoveram intensas transformações nas nossas vidas. O cenário atual das relações trabalhistas nitidamente demonstra a existência de uma situação nova e sem precedentes. Dizem, por exemplo, que o universo Offline já acabou e que, o futuro do trabalho tende a ser híbrido. Mas, o que significa afirmar isso?

Conhecer os novos conceitos é fundamental para as empresas terem certeza que estão atuando dentro da lei, garantindo os direitos e deveres dos seus empregados.

Sobre isso, destacamos as Medidas Provisórias editadas pelo Governo Federal que flexibilizou alguns direitos trabalhistas, tais como permitiram instituir o home office, trabalho remoto ou a distância, aplicaram redução de jornada e salário, suspenderam contratos de trabalho, tornou-se possível a antecipação das férias com comunicação de antecedência mínima de quarenta e oito horas, por escrito ou por meio eletrônico, entre outros.

No entanto, houve um impacto direto da pandemia no surgimento de novas demandas trabalhistas. Atualmente, estima-se que foram ajuizados aproximadamente pouco mais de 145 mil processos desde o surto da Covid-19, que tratam de matérias direta ou indiretamente relacionadas com a pandemia. É justamente nesse contexto, diante de potenciais e relevantes mudanças promovidas pelo distanciamento social, a empresa deve estar devidamente aconselhada juridicamente.

O home office foi intensificado e muitos setores devem torná-lo definitivo mesmo após o fim da pandemia. O que o empresário deve analisar na hora de transformar uma medida temporária em uma política de admissão permanente?
Muito se fala atualmente sobre os chamados modelos de trabalho híbrido. Mas, o que será melhor e mais adequado para a empresa?

O home office consiste no “trabalho em casa”, o ideal é que seja criado um ambiente específico para trabalhar nesse espaço. Mas, apesar de ser uma das alternativas, não é o único formato de regime de trabalho fora das dependências da empresa.

O que caracteriza o conjunto de modelos de trabalho híbrido é justamente a alternância do trabalho remoto (fora das dependências da empresa) e o presencial. Podemos destacar atividades realizadas em home office, coworkings, anywhere office, bibliotecas e até mesmo na sede da empresa.

O que não se confunde com o trabalho externo, como o caso de vendedores externos, motoristas e motoboys entre outras profissões que são feitas externamente.

A lei trata somente sobre o regime de teletrabalho. Segundo o artigo 75-B da CLT, é aquele que a atividade do empregado é desenvolvida preponderantemente fora do ambiente corporativo, mas não necessariamente em casa. Por exemplo, um colega trabalhando de qualquer lugar e vai para a empresa somente em questões pontuais, em eventos ou em reuniões mais importantes.

A alteração contratual do presencial para o teletrabalho, conforme previsto na lei, deve ser feito por mútuo acordo entre empregador e empregado mediante termo aditivo.

No dia 27 de abril de 2021, foi publicada uma Medida Provisória nº 1.046/21 que dispensou algumas etapas formais e possibilitou, além da adoção do teletrabalho, o trabalho remoto ou qualquer outro tipo de trabalho a distância de modo temporário, com prazo de vigência de 120 dias.

Empresas que querem implementar de forma temporária podem se beneficiar com as regras emergenciais. Por exemplo, a possibilidade de alteração unilateral pelo empregador, ou seja, o empregador pode solicitar a alteração do regime para o teletrabalho e comunicar o empregado com prazo de 48h para se adequar.

O empresário deve analisar com cuidado os modelos existentes e definir no contrato individual de trabalho todos os termos, as peculiaridades e a periodicidade do empregado dentro da empresa. Enquanto o regime de home office pode ser 100% de casa, não necessariamente é predominantemente fora da empresa. Por exemplo, trabalhar três dias em casa e dois no escritório.

Para o trabalho remoto, não há limitações de espaço e o empregado tem liberdade para escolher o local onde se sente mais produtivo para realizar suas atividades. Seja em casa ou em uma cafeteria, por exemplo. Definir o local, a estrutura, as responsabilidades das partes previamente em contrato escrito, mediante acordo coletivo ou acordo individual é de suma importância.
Ainda não existe uma lei dedicada somente ao home office, entretanto, a empresa deve estar atenta a isso, pois, apesar do trabalho ser realizado fora da empresa, devem ser mantidas todas as obrigações e formalidades trabalhistas, como cumprimento da jornada de trabalho e intervalos. (Art. 6º da CLT).
Seja qual for o melhor modelo para a empresa, caso decidido adotar esses formatos mesmo após a pandemia, devem ser observadas as regras vigentes e as adaptações necessárias no termo aditivo ao contrato de trabalho.

Para o trabalhador, o home office trouxe facilidades, mas também exige adaptações. Qual é a sua responsabilidade em termos de proteção à saúde e disponibilidade de equipamentos para o desempenho das funções?
Ainda que a lei seja omissa com relação aos novos formatos, segundo o artigo 75-B da CLT, a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura adequada à prestação do trabalho devem ser previstas por escrito em contrato individual de trabalho ou em termo aditivo.

Se houver a responsabilidade do empregador no reembolso de despesas arcadas pelo empregado, por exemplo uso de pacote da internet, também deve ser prevista em contrato escrito.

Nesse mesmo sentido é a Medida Provisória 1.046/21, todas as disposições relativas sobre a responsabilidade devem ser firmadas por escrito em termo aditivo ao contrato de trabalho presencial ou ao próprio contrato individual de trabalho. Todas essas utilidades mencionadas não integram a remuneração do empregado, pois não tem natureza de salário.

A fim de assegurar maior segurança jurídica, as empresas passaram a regulamentar quais as responsabilidades sobre o fornecimento de equipamento; a estrutura de trabalho; modo de atividade; o valor a ser reembolsado, meios de controle de jornada etc. em Acordo Coletivo ou Convenção Coletiva de Trabalho.

Em relação aos equipamentos de proteção no teletrabalho, de quem é responsabilidade? O que é preciso se atentar nessa questão?
São tantas questões que não foram previstas na lei e agora as empresas estão sentindo na prática e se adequando, por meio de convenções coletivas ou acordos coletivos e individuais. O art. 75-E da CLT determina que é do empregador a responsabilidade de instruir os empregados, por escrito e de forma ostensiva, quanto as precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidente de trabalho.

Importante frisar que, o empregado deve assinar termo de responsabilidade, comprometendo-se a seguir toas essas instruções dadas pelo empregador.

Novamente a importância de políticas e regulamentos internos da empresa, que prevê modo de atividade, mobiliário necessário, como deve ser a postura, infraestrutura adequada, qual o valor de reembolsos, o horário de trabalho, meios de efetuar o controle de jornada etc.

Ainda que seja realizada toda precaução, ginástica laboral, adequação da infraestrutura no local de trabalho, se o empregado resolveu trabalhar sentado no sofá? Ou seja, não seguiu as orientações da empresa. Justamente, o grande desafio é este. A empresa não consegue, tampouco poderia fiscalizar o domicílio do empregado. Por exemplo, a funcionária, levando o lixo e caiu na calçada, caracterizaria um acidente de trabalho? Afinal, a funcionária estava trabalhando de casa. Poderia ser acidente por equiparação? Essa funcionária tem controle de jornada? Quais são suas funções?

O empresário deve observar, além das normas de saúde e segurança aplicáveis ao exercício da função fora da empresa, meios adequados para controlar a jornada e monitorar o acesso do empregado no sistema. Contudo, em eventual acidente de trabalho no trabalho remoto ou teletrabalho, por se tratar de situação nova, as responsabilidades são passiveis de discussão e, deve ser analisado o caso concreto.

O teletrabalho e a pandemia em si também trouxeram outro problema à tona, que é a saúde mental do trabalhador. Como os operadores de direito do trabalho têm lidado com essa questão junto às empresas e funcionários?
Sonho para alguns e pesadelo para outros, o teletrabalho, o trabalho remoto ou a distância nunca estiveram em tanta evidência. Alguns defendem que trabalhar em casa pode ser libertador, com mais flexibilidade na rotina de trabalho e outros que não acreditam que entregam os mesmos resultados de um formato tradicional de trabalho.

O trabalho no modelo híbrido também é uma transformação cultural. O empregador e empregado devem analisar a possibilidade de trabalho a distância ou em casa, de se organizar, de produzir. Após o relaxamento de medidas restritivas contra a Covid-19, algumas pessoas não pensam mais em voltar a trabalhar presencialmente, como também tem gente que detesta e não vê o momento de retornar para a empresa.

A palavra do momento é o sistema híbrido, ficou provado que o trabalho 100% de home office não é mais adequado para saúde mental, por isso justamente o “híbrido”, essa alternância entre atividades presenciais e trabalho a distância, é cada vez mais praticado entre grandes empresas.

Diversos aspectos precisam ser levados em consideração para que um modelo de regime de trabalho seja implementado, enquanto um colaborador pode ter um escritório em casa, outro terá que trabalhar de maneira improvisada. Trabalhar durante a pandemia, com distanciamento social, somente com uso de equipamentos de tecnologia para exercer sua atividade a distância, no sofá com pijamas basicamente por dias consecutivos, os dias se misturam e, o trabalho se torna maçante.

Para evitar prejuízos na saúde, a orientação é que sejam atendidos os requisitos legais, por exemplo na França as empresas adotaram uma etiqueta digital, o que permite ao empregado o direito a desconexão.
Em um futuro próximo de “pós pandemia”, com o fim do isolamento social obrigatório, provavelmente, o home office se torne mais flexível, híbrido, o que pode ser fantástico tanto para empregado como para empregador – se respeitadas as peculiaridades e adaptações necessárias.

A pandemia trouxe muitas situações inéditas para o Judiciário resolver. A jurisprudência tem caminhado no sentido de esclarecer bem as situações ou há muitas divergências a serem pacificadas?
Existem basicamente três questões muito sensíveis que surgiram após as transformações nas relações trabalhistas durante a pandemia: o fornecimento dos equipamentos, saúde e segurança do trabalhador e o controle de jornada de trabalho.

Atualmente não tem lei que dispõe regras claras e extensas no que tange ao conjunto de modelos de trabalho híbrido. Sob a ótica das jurisprudências, devem ser definidos os termos em contrato ou termo aditivo por escrito, observadas as disposições em Convenção Coletiva de Trabalho, Acordo Coletivo de Trabalho ou Acordo Individual de Trabalho.

Considerando que no trabalho remoto ou teletrabalho é o empregado é quem define basicamente a própria rotina do trabalho, a empresa deve observar rigorosamente todas as disposições vigentes a fim de evitar passivos trabalhista.

A jurisprudência tem apontado no sentido de que o mero uso de e-mail ou algumas trocas de mensagens via chat fora da jornada contratual, expressamente impugnadas pela empresa, é insuficiente para o deferimento das horas extras.

Entretanto, a exclusão do teletrabalhador do controle de jornada não é uma regra absoluta. A jurisprudência entende que se houver meios de controlar a jornada (acesso ao sistema, chamadas efetuadas, programa adotado pela empresa por exemplo, “Nosso tempo Web” etc.), o empregado deixa de ser inserido no rol do artigo 62 da CLT, submetendo-se a controle, sendo devidas horas extraordinárias, se for o caso de eventual sobrelabor.

Durante a pandemia, muita gente começou a trabalhar 12, 14 horas do dia, sem intervalo de almoço e descanso e isso trouxe uma preocupação do Ministério Público do Trabalho, que editou Nota Técnica nº 17 com orientações, sem caráter obrigatório de lei, mas a dica é para que a empresa encontre um meio para o controle dessa jornada. O conselho que temos dado há anos aos nossos clientes, hoje, mais do que nunca, é verificar e evitar riscos de passivo mediante a verificação dos contratos de trabalho vigente. O momento é excepcional e o cuidado deve ser redobrado.

Em âmbito judicial, as audiências on-line facilitam ou prejudicam o processo trabalhista? O que deve ser melhorado?
Os advogados que atuam na área trabalhista têm visões diferentes sobre as audiências telepresenciais que, certamente não estão isentas de críticas.

Primeiramente, é razoável analisar o fato que não são todas as pessoas que possuem smartphones e ou pacote de internet com conexão estável o suficiente para garantir a participação nas referidas audiências.

Para alguns profissionais, implementar procedimentos às pressas não é razoável, principalmente por afrontar princípios constitucionais, como o direito ao contraditório e a ampla defesa. Outros vêm com bons olhos a modalidade de audiência virtual, pois auxiliou no andamento do processo, principalmente para audiências iniciais e tentativas de conciliação.

Realmente, alguns aspectos relevantes devem ser considerados. Por exemplo, alguns usuários têm dificuldade em manusear o aplicativo da plataforma da audiência virtual. Pode também haver dificuldade de se comunicar em particular com o cliente e vice-versa sem a interferência da outra parte.

Alguns advogados afirmam que essas audiências telepresenciais deveriam ser facultativas, cabendo aos juízes e às partes avaliarem o caso concreto. Entretanto, o que se tem percebido é que somente em casos excepcionais os magistrados estão deferindo pedido para redesignar audiência virtual.

Em alguns processos as audiências virtuais não acarretarão prejuízo para as partes, mas é bom ressaltar que em se tratando de audiências de instrução processual, o depoimento pessoal pela parte ou testemunha a distância pode parecer superficial e comprometer o resultado do processo.

Não podemos ter “medo do novo”. Os desafios provocados pela pandemia do Covid-19 atingiram diversos ramos de atividade, não seria diferente com o nosso sistema judiciário. Entretanto, é imprescindível a manutenção da atividade dos tribunais e os atos telepresenciais são uma realidade necessária para desafogar o sistema judiciário.

Muito se fala em um “novo normal” pós-pandemia. O que é possível vislumbrar desse “novo normal” no futuro direito do trabalho no Brasil?
Sem dúvidas estamos vivendo um momento de transformações culturais, tanto para o empresário, como para o empregado, apesar desse contato olho no olho deixar de existir, a cultura do modelo de home office, teletrabalho, anywhere office, se instalou como uma necessidade, mas será que veio para ficar?

A lei, ainda que omissa, dispões que as partes devem definir previamente em contrato o meio de fiscalizar a produtividade, a periodicidade do empregado dentro e fora da empresa, se o trabalho é remoto, a distância ou em casa, se a empresa fornecerá equipamentos, se sim, quais seriam eles, ajuda de custos etc.

Mesmo com tantos desafios no dia a dia, houve um aumento da prática entre as empresas que adotaram esse regime de forma definitiva e muitas já atribuem parte do sucesso a esse novo modelo das relações trabalhistas.

Com normas emergenciais sendo editadas nesse “novo normal”, o ideal é o setor de RH estar devidamente aconselhado juridicamente, com pareceres que viabilizem uma atuação segura na tomada de decisões.

O conjunto de modelos de trabalho híbrido engloba diversas possibilidades, características próprias e adequações que devem ser combinadas previamente e por escrito, no cenário “pós pandemia”, para instituir o regime na empresa, devem ser analisadas as peculiaridades da atividade do empregado.

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