Cala a boca já morreu

por João Geraldo Lopes Gonçalves

“A maioria não tinha ideia do que passava. A censura e o milagre brasileiro cegavam” (Marcelo Rubens Paiva)

Hoje, primeiro de Abril, é muito especial para este escrevinhador e tomo a liberdade deste diário para revelar os porquês. O primeiro é que meu netinho Pietro Rodrigues Gonçalves completa mais uma Primavera de vida. O “molekinho”, como gosto de me referir a ele, faz 13 anos hoje. E como um dos presentes, dizem que os avós são a síntese do mimo, será dedicado este ensaio a ele, por um motivo bem básico.

Pietro nasceu na democracia. Nasceu em um tempo de dificuldades, sim, mas onde as liberdades individuais e coletivas são respeitadas. Um tempo em que não há restrições a sua fala, a seus atos, não há caça às bruxas por pensar e falar exatamente o que pensa.

Neste clima é que Pietrinho veio ao mundo. E é neste clima que desejamos que ele e sua geração e as futuras continuem a viver. E que vençam as dificuldades e resolvam os conflitos com serenidade, sem violência e com muito amor e paz.

Um tempo de tolerância e convergência: é este momento que este avô babão deseja ao seu neto.

O segundo momento, embora não seja feliz, é de suma importância que possamos lembrar no dia de hoje. Em um fatídico dia 1º de Abril de 1964, o maior delírio real de nossa História, como diria Glauber Rocha, tinha início e decretava no País uma longa noite que duraria 21 anos.

Foi em um dia como hoje de outono, onde a noite e de manhã a temperatura abaixa e a tarde ela eleva um pouco, se preparando para o inverno, que tanques e metralhadoras tomaram conta das ruas de Brasília e de várias cidades do País.

Como o argumento de frear o comunismo e sua tentativa de tomar o Brasil de assalto, os militares em um acordo com empresários e lideranças da sociedade civil, inclusive igrejas, fecham as instituições do Estado, derrubam um presidente e empossam um fardado que vem das casernas para comandar o País.

E aí a longa noite se institucionaliza.

Prisões, torturas, assassinatos, exílios forçados. Uma política econômica que primeiro solta uma das maiores “fake news” da História, de que tinha sido um milagre econômico. Mais tarde, este milagre se revela com o maior engodo da República, com uma dívida externa gigante, desemprego, recessão, inflação.

Durante muito tempo, a população brasileira acreditava na propaganda ufanista e ilusória dos generais e isto tinha um motivo que o jornalista e escritor Marcelo Ruben Paiva, com o qual abrimos este texto, cita: a censura ou a Dona Solange, como gostava de se referir a um dos censores o compositor Tom Zé, um dos mais censurados e perseguidos no período.

A censura compreendia todos os segmentos da sociedade, mas foi cruel e pesada com a imprensa e em especial com as artes e a cultura.

Peças e espetáculos teatrais, filmes, artes plásticas, música, foram amplamente vigiadas e censuradas. Na Música só como exemplo, tivemos autores como Taiguara, Odair José, Chico Buarque e o citado Tom Zé com uma média de 100 canções, cortadas ou integralmente ou parcialmente.

Shows eram interrompidos ou nem se realizavam. Ficou famosa a apresentação de Chico e Gilberto Gil no Phono 73, uma série de shows da gravadora Phonogram Philips, com seus artistas.

Chico e Gil, mostravam ao público a primeira parceria entre eles: Cálice, quando os microfones e caixas de som foram desligados a mando dos censores que ali estavam. Além disto, a canção ficou proibida por cinco anos, liberada somente em 1978.

A censura não tinha critérios que poderiam discutir culturalmente uma obra de arte. O objetivo era barrar, mesmo sem entender, obras que suspostamente poderiam atacar o governo ou “corta o de fulano, pois ele é contra o regime”. Durante muito tempo, fomos alijados de ter acesso a obras primas em todos os segmentos culturais, em função da censura.

Este estado de coisas, desde o Golpe de 2016, tem ameaçado voltar e, com isto, quebrar o ambiente de amorosidade e afeto que meu neto nasceu, em especial nos três anos de Bolsonaro na Presidência. Ele já passa para a História na República e em regimes de Democracia como o governante que mais ações e iniciativas tem tomado para censurar e atacar as artes.

O caso da Censura ao Festival Lollapalooza foi o último. Mas não foi o primeiro e, enquanto o bolsonarismo estiver no poder, com certeza não será o último. De acordo com o Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), de 2019 em que tomou posse até agora, foram 212 casos de censura praticados pelo Estado Brasileiro, batendo o recorde, como dissemos, em períodos democráticos.

O governo, desde o início, escolheu a Cultura como um dos principais inimigos ideológicos do bolsonarismo e coloca o próprio Ministério com um playboy pitbull no comando, com a missão de perseguir criadores de arte. O grosso da “censura” foi praticada contra a cultura pelo Governo Bolsonaro, representando 71% dos casos.

Só para exemplificar: entre 2016, a partir da posse de Michel Temer até 2018, ano em que deixou a Presidência, foram 16 registros apenas. No de Jair, o governo em 2020 praticou 40 casos de censura e perseguições, fechou 2021 com 70, e neste 2022, já chegou neste primeiro trimestre a doze casos, incluindo o “Lolla”.

Os ataques não se limitam a ações no Judiciário ou a cortes e proibições como a censura ao filme de Danilo Gentile, por supostamente incentivar a pedofilia, e o próprio Festival já citado. Declarações e discursos contra iniciativas e artistas são constantes. Parte na maioria das vezes do próprio Bolsonaro e do seu lugar-tenente na Cultura, também já citado aqui, que regularmente desrespeita as pessoas.

É bom lembrar que o sujeito é acusado de gastar dinheiro público para viagens e compromissos pessoais. A censura é uma das armas eficazes infelizmente de regimes autoritários. Aceitar ações que oprimem a liberdade de expressão e de criação é o primeiro passo para enterrar a democracia. Lamentável que alguns setores da sociedade, em especial alguns membros do Judiciário, tenham uma tendência equivocada de aceitar argumentos que retirem estas liberdades.

No dia de hoje especial para nós, como já dissemos, falar de manutenção do Estado de Direito e Democrático é semear o presente e o futuro de meu neto e de todos. Que nos próximos aniversários este avô escreva um texto em que não fale de ameaças, mas de amor e fraternidade.

Nota: O Golpe de 64 efetivamente se consolidou com a tomada de Brasília, que acontece no dia 1º de Abril. Os militares e outros insistem que foi 31 de Março, para fugir do rótulo do Dia da Mentira. Como dizia Karl Marx, a História se repete como tragédia ou farsa. Em tempos de “fake News”, por enquanto, para muitos ela se dá como farsa.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

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