A história como lupa para o futuro

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

“Eu era alegre como um rio
Um bicho, um bando de pardais
Como um galo, quando havia
Quando havia galos, noites e quintais

Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
O mal que a força sempre faz
Não sou feliz, mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais
Não sou feliz, mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais”

Essas são as estrofes finais de uma das obras mais significativas do repertório do cearense Belchior. “Galos, Noites e Quintais” se popularizou na voz de Jair Rodrigues em 1975, mas que o autor gravou tempo depois. Recentemente, a cantora Ana Canãs, em seu disco só com interpretações de Bel, fez uma versão bacaninha.

Na primeira estrofe, Belchior volta ao passado. Lá em sua terra natal, no campo, junto a natureza, livre, solto e leve. As recordações da infância e juventude o remetem a um mundo de felicidade, simples, acolhedor e sem dor. Já na segunda estrofe, o autor fala do medo, da repressão da violência, que tudo destroem. Mas apesar dela, a “força”, ele não perde a esperança, canta ainda mais, não fica mudo.

Nestas duas estrofes, podemos detectar a existência de três palavrinhas que, soltas, não dizem muita coisa: Memória, Verdade e Justiça.

Nos últimos quatro anos, o bolsonarismo no poder produziu um revisionismo histórico e conceitual, que tentou apagar fatos comprovados e mexer com a estrutura de pensamento da sociedade, regredindo a tempos obscuros de sangue e morte. Considerar o Golpe de 64 como benéfico e a Ditadura Militar como sinônimo de desenvolvimento nacional enterrou a Memória, sepultou a Verdade e dilacerou a Justiça.

Se o povo não tem memória histórica e afetiva, jamais chegará perto do real, se perderá em narrativas errôneas e mentirosas e, assim, a justiça tardará a ser feita. É preciso resgatar a História, para evitar sequências de golpes e ditaduras que o País viveu desde o fim do império.

Neste sentido, hoje vamos tratar de três fatos históricos ocorridos em 1973, envolvendo a música. Dois no Brasil e um nos Estados Unidos, mas que teve e tem repercussão por aqui.

Os três estão relacionados ao contexto político, social e cultural naquele momento. Propomos que, ao ler, o internauta faça o exercício de empregar o método da memória, da verdade e da justiça.

A terra é redonda

Não, nós acreditávamos, e eu ainda acredito, que aditadura militar tinha sido um gesto saído de regiões profundas do ser do Brasil, alguma coisa que dizia muito sobre o nosso ser íntimo de brasileiros – vocês podem imaginar como a minha dor era multiplicada por essa certeza. No entanto, uma vez no exílio, chegavam até nós, saídas de regiões não menos profundas do ser do Brasil, vozes que nos diziam (nos tentavam dizer) que isso não era tudo” (Caetano Veloso, em Circuladô vivo)

No dia 13 de dezembro de 1968, o general presidente de plantão, Costa e Silva, decreta o Ato Institucional número 5, o golpe dentro do golpe. Entre as medidas, prisões aleatórias e sem ordem judicial, fim do Habeas Corpus, fechamento do Congresso Nacional e legitimação do regime de exceção.

14 dias depois, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos em São Paulo e levados a quartéis do Exército no Rio de Janeiro. Lá ficaram um mês na solitária, sem comunicação com ninguém e muito menos sabiam os motivos por que estavam sendo detidos pelos militares.

Quase dois meses incomunicáveis depois e, passando por repressão psicológica, é que souberam das razões da prisão. Um apresentador da TV Record, Randall Juliano, teria denunciado os baianos, por sapatearem em cima da bandeira nacional e cantar, com a melodia de Tropicália, de Caetano, o Hino Nacional de forma jocosa e desrespeitosa.

As acusações nunca foram provadas, mas também não inocentaram os artistas que, após três meses de xadrez, ficaram confinados em Salvador por cinco meses, até serem exilados a força pelo regime. Caetano e Gil ficaram de 1969 a 1972 em Londres. Lá comeram o pão que o diabo amassou. Mas produziram discos maravilhosos.

Entre eles, o aniversariante “Transa”, de Caetano Veloso. Cinquentão, o disco foi um trabalho coletivo, com a participação de músicos também exilados e Gal Costa e Ângela Rô, Rô, nos backing.

“Transa”, ao contrário do disco anterior gravado na Inglaterra, é menos melancólico, menos saudosista, mais esperançoso, representava a possível volta de Caetano e Gil para o Brasil. Quase todas as letras em inglês, o disco está sendo revivido por Caetano Veloso este ano de 2023, com uma turnê com músicos com Jards Macalé na banda.

Com isto, Cae faz a reflexão histórica e nos faz pensar que Ditadura Nunca Mais.

Um certo dia na prisão, Caetano recebeu a edição da revista Cruzeiro. Nela tinha uma foto que trazia o Planeta Terra, redondinha como ela sempre foi. Anos depois, Caetano faz a canção “Terra”, fruto destas memórias, cheias de verdade e justiça.

Vencendo o racismo de classe

Antes do hip hop, já existiam o mundo, os problemas, os negros, mas era desorganizado. A gente que é da cultura pensa que a política começa com rap, mas a revolta vem de antes. Com menos armas, mas com mais bravura. MANO BROWN.

No início dos anos 90, frequentava uma das ruas do bairro Cecap em Limeira, onde minha então namorada Nadir morava. Na rua, vi garotos adolescentes com caneta, lápis e papel na mão cantando um ritmo quase falado e rimado, que eu não conhecia. Tempos depois, em minhas férias do trabalho, passei boa parte delas fazendo um programa interativo, na antiga rádio comunitária Antena Azul.

Certa vez, vários meninos e meninas ligaram no programa e pediram canções de um grupo intitulado Racionais MC. Fui pesquisar e descobri que representava o canto e a composição de um movimento bem maior chamado Hip Hop, que teve origem no 73 retratado por nós hoje, no bairro negro e pobre do Bronx em Nova York, nos Estados Unidos.

O Broxn fez parte de uma política de especulação imobiliária que tirava dos grandes centros e jogava os pobres bem longe das oportunidades e da cidadania. Populista e mentirosa, representava mais um ato de racismo e discriminação de uma sociedade branca e elitista. A resposta só poderia vir da população negra e excluída, e jovem, claro. Foram migrantes jamaicanos e afros americanos que criaram os quatro elementos.

Os MCs, que cantam, os DJs que com dois discos tocando simultaneamente bits, sons, para acompanhar o canto rimado, o poeta, aquele que escreve de improviso ou não e o grafiteiro que, nas paredes e muros, manifesta seu pensamento.

O Hip Hop é revolucionário, pois ele nasce das manifestações do povo, cansado de ser explorado, de viver na miséria e a margem da sociedade. No Brasil o hip hop, vai florescer nas favelas, nos morros, nas periferias, onde descendentes de escravos enxergam na arte uma forma de luta, sem guerrilha armada, como diz Mano Brown. Aqui é feito pelos excluídos para os excluídos.

Os 50 anos são a afirmação daqueles garotos americanos, aos críticos da indústria cultural, de que eles vieram para ficar. A minissérie veiculada na Netflix “The Get Down” conta fielmente as origens do Hip Hop, com um roteiro que mistura ficção e fatos reais. O disco aqui que toquei na rádio Comunitária é o “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais de 1997.

O Hip Hop é uma das culturas Afros que duram nas populações pobres.

VIVA.

Cala-te boca

Pai, Afasta de Mim este Cálice. JESUS CRISTO.

Gilberto Gil, e Chico Buarque viveram no exilio, entre 1969 e 1972. O primeiro em Londres e o segundo, em Roma. Inimigos da Ditadura Militar, sabiam que sofreriam toda sorte de perseguições e para isto tinham que buscar um jeito de “driblar” o regime, para poder sobreviver no Brasil.

Chico voltou em 1970, é já de cara sentiu a barra pesar. Ao lançar “Apesar de você”, a canção virou hino das esquerdas dentro e fora da cadeia. Veio a censura e a canção só foi liberada em 1978. Gil volta um pouco depois em 72 e lança o revolucionário e emblemático disco Expresso 2222. Os dois eram artistas da Major Pholigram, ou Philips.

Em 1973, a gravadora tinha como contratados os maiores artistas da MPB e decidiu, para divulgar seu catálogo, realizar shows com seus comandados. Assim, em três dias, foi realizado uma das maiores manifestações daquele momento contra a ditadura.

Gil e Chico foram escalados para se apresentarem juntos. Nunca tinham feito uma composição em parceria. A gravadora deu um mês para compor.

Gilberto Gil liga para Chico em uma quinta-feira santa, para aproveitar a semana santificada e fazer a canção. Gil deu o tom, pois segurava uma taça de vinho nas mãos: Pai, Afasta de Mim este Cálice. E aí, na sacada do apartamento de Chico Buarque, “Cálice” foi gestada. Na apresentação, um censor dos milicos estava no show.  Quando os dois começam a cantar a letra, os microfones são desligados e eles ficam só no Lá, Lá.

Censurada, “Cálice” foi liberada no disco “Samambaia” do Chico em 78. Gil nunca a gravou. Na época da gravação, Gilberto Gil não estava mais na Philips. E aí Chico Buarque a canta com Milton Nascimento.

A todas e a todos, bom final de semana.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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