Os personagens do Dia da Infâmia

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

Ficção ou realidade? Ao ligar a televisão no dia 8 de janeiro na parte da tarde, nos deparamos com as cenas mais típicas de filmes americanos de violência, muito comuns na programação televisiva. Mas ao invés de gringos, os protagonistas eram brasileiros dos quatro cantos do país.

A maioria de meia idade e idosos, mas também muitas crianças, vestiam camisetas verde e amarelo da Seleção Brasileira, com o escudo da corrupta CBF. Quase todos brancos, com cara bem nascidos.

Ao entrar nas sedes dos três poderes da República, o que se viu eram os que se identificavam como cidadãos de bem se tornarem aqueles vilões dos filmes enlatados aqui citados, que não perdoam nada pela frente e destroem com as armas que tem.

Os tais patriotas, outra forma que eles se intitulam, tinham como vítima obras de arte como um Di Cavalcanti ou um relógio de mais de 200 anos. Entraram e, sem timidez, quebravam tudo com uma fúria de uma mãe loba cujos filhos lhe foram tomados por predadores.

Os tais revelavam uma face que assustou e surpreendeu, inclusive, familiares, que viam as imagens, com um misto de “eu não acredito”, com desespero, mesmo aqueles adeptos ao bolsonarismo.

Uma das histórias relato aqui, cujos nomes e locais são totalmente fictícios. Ana e Zé Paulo estão casados há mais de 50 anos. Da relação, três filhos já crescidos e casados. O mais velho, Romeu, é que narrou esta triste história.

Meus pais nunca gostaram de política. Quando as eleições aconteciam, eles votavam em branco ou não iam às urnas. Tinham ojeriza por notícias do ramo, mesmo que dissemos se tratar de assuntos de interesse deles e da nação.

Meu Pai sempre dizia que ninguém botava comida na mesa para ele e que político nenhum prestava, era tudo corrupto. Se dizia conservador e defensor da família. Para ele, basta Deus no céu e os seus braços para trabalhar.

No entanto, em 2017, teve um infarto, fez cirurgia, colocou safena. Acreditou em um religioso que disse, em sonho a ele, que Zé Paulo não iria morrer, bastava, após o hospital, frequentar sua igreja.

Meus pais nunca foram ativos na Igreja, mas a partir daí começam a ser frequentes as idas ao templo da nova igreja. As mudanças não foram só o fato de agora serem atuantes na religião. O discurso mudou.

Lula ladrão, petralhas têm que morrer todos. Deus, a família e o Brasil e o resto é cadeia. Aborto é pecado, mulher na cozinha e para fazer filho. Gay, morto. Preto lixo, nojo. Era o tempo todo desferindo ódio e o justificando com versículos e passagens bíblicas, todas elas mal interpretadas.

Meu pai sempre ganhou bons salários, capazes de nos manter em um padrão de classe média alta. Mas nunca disponibilizou um centavo sequer para ajudar quem quer que fosse além da família.

Somas grandes de dinheiro saíam do orçamento da família, primeiro para a nova Igreja, depois para uma organização política de nome ‘Todos com Bolsonaro’.

A vitória de Lula foi para nós filhos, um alivio, não só pelo fato de que a Democracia estaria preservada. Mas porque acreditávamos que nossos País, fossem sossegar, mesmo tristes com a derrota e voltar a vida como era antes.

Mas horas depois da apuração já não sabíamos mais de pai e mãe. Localizamos eles na sede do Exército da cidade, acampando em barracas, com centenas de outros idosos como eles vestidos de verde e amarelo, reivindicando a volta da ditadura militar, para depor Lula e prender Alexandre de Moraes.

Os delírios só aumentavam. Meus pais não viam mais para casa. Rezavam para pneus e ETs o dia inteiro. Liam a Bíblia e tacavam fogo em exemplares da Constituição.

Palavras de ordem com morte aos eleitores de Lula incluíam até nós filhos, segundo mensagens que eles gravavam em vídeo e postavam nas redes sociais. A radicalização só crescia e nossa preocupação também.

Aí eles postam no dia anterior a invasão de Brasília, uma foto ao lado de umas 40 pessoas todas bolsonaristas, branquinhas e bem de vida, alegre e pimponas, indo para a Capital do País.

No domingo, já sabíamos que nossos Pais estavam lá na tal manifestação. Mas como todo o Brasil, imaginávamos algo passível, horrível, cheio de agressões verbais e mais nada.

Qual foi nossa surpresa que uma das imagens do Congresso Nacional mostra meu pai e minha mãe, quebrando vidraças do lugar e tirando selfie ao lado da destruição. Minha mãe ainda mandou beijos para as suas colegas de pilates, dizendo: ‘vocês tão com inveja de mim, né, mócreias?’.

Meu pai estava irreconhecível. A face mudada, toda vermelha, raivosa, punhos cerrados e falando palavrões o tempo todo. Mandava a gente lavar a boca com sabão toda a vez que proferíamos uma palavra ‘indecente’ para ele.

O desespero tomou conta de nós. Começamos a ligar no celular dos dois e nada deles atenderem. A noite já entrara e milhares de pessoas estavam sendo presas encaminhadas aos presídios. Meus pais não apareciam em nenhuma lista ou imagem seja na Internet, seja na TV.

No dia seguinte, a procura continuava e descobrimos que eles também não estavam no acampamento de Brasília dos terroristas.

Três dias e nada. Resolvemos pegar um avião e ir para a capital. Depois de imensas procuras, uma pista dada por outro idoso nos fez chegar em uma cidade-satélite do DF. Em uma hospedaria, lá estavam meus pais, magros, pois não comiam decentemente desde o domingo e morrendo de medo de serem presos.

Na volta, acreditávamos que o facho abaixaria, que o normal poderia retornar. Ledo engano. Meus pais agora tem o discurso de que vivem na Ditadura do Lula e do PT.

E aguardam, para o segundo semestre deste ano, a vinda do Anjo exterminador em um cavalo branco, com uma espada mortal que cortará as cabeças dos petralhas”.

O relato acima, guardada a ficção, é um apanhado de situações que mostram desde a gestação de, no mínimo, um golpista que se apresenta como um cidadão zeloso de seus deveres, chefe de família e a apolítico, em um monstro capaz de atos terroristas.

Infelizmente o dia 8 de janeiro de 2023 será conhecido como o Dia da Infâmia e da Vergonha. Mas também o dia em que a democracia venceu novamente.

Um bom final de semana a todas e todos.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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