A sistemática da revisão da prisão preventiva – Art. 316 do cpp

Por Edmar Silva

Recentemente ganhou destaque na mídia nacional o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo a pessoa conhecida como “André do Rap” e o caso envolveu a interpretação e aplicação do art. 316 e seu parágrafo único do Código de Processo Penal (CPP), que prevê a necessidade de o juiz reavaliar a prisão preventiva do réu a cada 90 dias, sob pena de ilegalidade. Discute-se, desde então, se eventual omissão do juízo em reavaliar a prisão preventiva resultaria, ou não, na automática soltura do acusado.

A questão da necessidade ou não de prisão do investigado ou do réu durante o procedimento penal fica sujeita à cláusula rebus sic standibus (expressão latina cuja tradução é “estando assim as coisas”), ou seja, alterando-se a situação de fato anteriormente existente, pode a situação jurídica do acusado também sofrer modificação. Em outras palavras: o juiz, diante de modificação dos motivos que permitiram o decreto da prisão preventiva, pode revogá-la, bem como pode decretá-la caso o réu esteja solto e venham aos autos do processo novas situações que justifiquem a prisão preventiva. Portanto, a situação de liberdade ou de prisão do réu não é estanque, ficando sujeita a alterações no decorrer do processo penal.

E nesse contexto aparece o art. 316 do CPP, cuja redação é a seguinte:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.    

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Ocorre que uma análise meramente literal do mencionado dispositivo, mais precisamente do seu parágrafo único, conduz à ideia equivocada de que, ou o juiz reavalia e justifica nos autos a necessidade de manutenção de toda e qualquer prisão preventiva no prazo legal ou não o faz e o réu tem que ser solto. A resolução do problema, no entanto, não deve passar por fórmula tão simples.

Ao operador do direito cabe interpretar e aplicar a lei ao caso concreto com suporte na hermenêutica jurídica, que é a ciência responsável por revelar os métodos para a compreensão do texto legal, pois toda norma, por mais objetiva que seja, precisa ser interpretada, a fim de que seu verdadeiro significado e real alcance sejam corretamente entendidos. E uma das interpretações possíveis e que aqui ganha relevo é a interpretação chamada de sistemática, que consiste na análise conjunta dos dispositivos legais e não de forma individualizada e literal.

Na interpretação sistemática o significado da norma e seu real alcance são extraídos do contexto em que ela está inserida, pois o direito é uno e por isso não pode ter disposições conflitantes entre si. É preciso buscar sua harmonia. Assim, por exemplo, embora existam alguns artigos de leis (cita-se a título de exemplo o art. 20 da Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha) prevendo a possibilidade de o juiz decretar de ofício a prisão do acusado, é certo que na prática tais disposições não devem prevalecer, em razão do sistema/princípio acusatório adotado em nosso ordenamento jurídico penal, segundo o qual há órgãos autônomos responsáveis pela acusação (Ministério Público) e pelo julgamento (Poder Judiciário), não cabendo a quem vai julgar (Poder Judiciário) também determinar ou realizar diligências, produzir provas ou agir de ofício (sem provocação da parte). Vê-se, dessa forma, que a análise sistemática do direito processual penal vigente impõe uma releitura de alguns artigos que, se forem vistos isoladamente, podem trazer conclusão diversa e equivocada.

E essa mesma interpretação deve ser feita com o art. 316 e seu parágrafo único do CPP.

Uma leitura rápida e descuidada do mencionado parágrafo traz a noção de que toda e qualquer prisão preventiva deve ser reavaliada pelo juiz a cada 90 dias, sob pena de se tornar ilegal. No entanto, é preciso notar que o parágrafo em questão está ligado ao art. 316, caput, sendo impossível sua análise isolada, porque, nos termos do art. 10, inciso II, da Lei Complementar n. 95/1998, os parágrafos constituem desdobramentos do artigo e não dispositivos autônomos. Sendo assim, é correto afirmar que não é toda e qualquer prisão preventiva que necessita de reavaliação do juiz a cada 90 dias, mas tão somente a prisão decretada nos moldes do caput do art. 316 do CPP, ou seja, aquela ordenada no curso da investigação policial ou do processo penal, em razão de fatos posteriores vindos aos autos.

Em claras palavras, somente se impõe a reavaliação da prisão preventiva do réu que, após ser solto no curso do procedimento criminal, tem novamente sua prisão decretada pelo juiz por razões inéditas alegadas e comprovadas nos autos. É essa prisão preventiva que necessita ser reavaliada periodicamente pelo magistrado, sob pena de ser considerada medida ilegal a ponto de permitir a soltura do acusado.

Justifica-se tal entendimento pelo fato de que a prisão na forma exposta no art. 316, caput, do CPP geralmente contém um fundamento mais oscilante (provisório), de modo que o passar do tempo pode contribuir para sua extinção.

A título exemplificativo, menciona-se o caso do réu que, após ser solto logo no início da investigação (logo após o flagrante), tem sua prisão decretada posteriormente no curso do processo em razão de ter ameaçado testemunhas ou vítimas (prisão para a garantia da instrução processual penal). Nessa hipótese, uma vez realizada de forma satisfatória a instrução (audiência), ou seja, ouvida a vítima ou inquirida a testemunha ameaçada, nada mais justifica a manutenção do acusado na prisão. Essa e outras situações passageiras semelhantes podem servir de fundamento para o decreto da prisão preventiva com fundamento no art. 316, caput, do CPP, havendo necessidade de o juiz reavaliar a imposição da medida para verificar se permanecem presentes os motivos autorizadores da prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do mencionado artigo de lei.

Por outro lado, situação diferente é aquela em que o juiz converte a prisão em flagrante em prisão preventiva e desde o início da investigação o réu permanece preso por ser reincidente (prisão para a garantia da ordem pública). Nesse caso, a reincidência se apresenta como circunstância objetiva e inalterável que permite a prisão preventiva, não havendo que se falar na sua reanálise a cada 90 dias, sob pena de se ofender a celeridade e eficiência do processo penal.   Com efeito, tal medida seria ineficaz, já que o fato de o acusado ser reincidente, e por isso apresentar perigo concreto de reiteração criminosa, não irá automaticamente desaparecer com o passar do tempo.

Por isso, a tese de que não é toda e qualquer prisão preventiva que exige reavaliação periódica vem ganhando força tanto no campo doutrinário (nesse sentido: Pedro Magalhães Ganen) quanto nos julgamentos proferidos pelos Tribunais (nesse sentido: 3º Câmara de Direito Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: Processo nº 0005318-45.2020.8.16.0000 – Marechal Cândido Rondon –  Rel.: Desembargador Sérgio Roberto Nóbrega Rolanski –  J. 27.02.2020) e tende a crescer mais ainda daqui em diante.

Conclui-se, portanto, que o correto entendimento sobre a reavaliação da prisão preventiva no processo penal exige uma análise sistemática do art. 316 e seu parágrafo único do CPP, o que, sem dúvida, irá resultar na verificação de que não se impõe a reanálise periódica de toda e qualquer prisão preventiva, mas, sim, somente daquela decretada no curso da investigação ou do processo, cujas circunstâncias fáticas sejam passageiras.

Edmar Silva – Analista Jurídico do Ministério Público de São Paulo

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