Procurador de Justiça de SP dá início a série de artigos sobre liberdade de expressão

A pedido do DJ, o procurador de Justiça e membro eleito do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Saad Mazloum, elaborou uma série de artigos com o tema liberdade de expressão, assunto tão discutido na atualidade especialmente por causa das redes sociais. O procurador teve recentemente uma publicação de sua autoria sobre o Ministério Público e a Liberdade de Expressão na oitava edição da Revista do Conselho Nacional do MP e, ao DJ, enviou um resumo deste trabalho. Confira:

O Ministério Público e a Liberdade de Expressão

Por Saad Mazloum

Uma breve história da liberdade de expressão

O direito à liberdade de expressão é reconhecido desde épocas bastante antigas, muito anteriores às modernas concepções de direitos humanos. Estudos indicam que o tema possa ter surgido como um dos princípios da antiga democracia ateniense, no final do século VI ou início do século V a.C. Também já era prevista na antiga República Romana, juntamente com a liberdade de religião.

A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada em 1789, profundamente influenciada pelo pensamento iluminista, estabeleceu direitos individuais e coletivos como universais. Reconheceu a liberdade de expressão como um direito inalienável e instituiu que a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões “é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade”.

A Primeira Emenda Constitucional dos Estados Unidos da América, de 1791, estabelece que a liberdade de expressão é um direito fundamental, sendo vedado ao Congresso aprovar qualquer lei que proíba ou restrinja o seu exercício. Naquele país, a salvaguarda a esse direito é de extraordinária força e pujança, não se admitindo quaisquer limitações. Bem por isso, a Suprema Corte norte-americana tem declarado repetidamente que “todo sistema de restrições prévias (…) chega a este Tribunal com uma forte presunção contra a sua validade constitucional”.

Reconhecida como um dos direitos fundamentais do homem, a liberdade de expressão está também prevista no artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos, elaborada em 1948, o qual dispõe que a liberdade de opinião e expressão é inerente a todo ser humano, e “inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Também é reconhecida pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do qual é signatário o Brasil (Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992).
Na verdade, o mundo percorreu um longo e árduo caminho até se chegar ao estágio atual. A humanidade conviveu por muitos anos com o arbítrio e punições cruéis por meio de tortura e outros suplícios.

E sem dúvida o período mais marcante ocorreu durante a Idade Média, que conheceu os excessos cometidos pela Santa Inquisição e seus Tribunais de Santo Ofício. O período foi pontuado por excessiva intolerância e forte censura. Quaisquer escritos relacionados à religião ou à moral e aos costumes da época deveriam ser submetidos ao “Qualificador do Santo Ofício”. Se não obtivessem a aprovação, os escritos poderiam ser incluídos no “Índice de Livros Proibidos”.

Dentre os escritores e filósofos mais conhecidos, que tiveram suas obras censuradas, destacam-se Voltaire, Diderot, Rousseau, Giordano Bruno, Descartes, Dante Alighieri, Boccaccio, Stendhal, Daniel Defoe, Victor Hugo, além dos cientistas Copérnico e Galileu Galilei. As obras condenadas eram confiscadas pela inquisição e depois queimadas – às vezes também seus autores.
Não é difícil imaginar o efeito devastador e o atraso que a censura causou sobre a difusão da cultura, das artes, das ciências e das ideais.

O Brasil também sofreu com longos períodos de censura e de ataques às liberdades públicas de expressão e de informação. A subida dos militares ao poder em 1964 perdurou até 1985. Golpe militar para alguns, revolução democrática para outros, certo é que os destinos do Brasil tomaram rumos marcantes, deixando evidente, mais uma vez, o que a história sempre nos mostrou: a censura e as arremetidas do Estado contra qualquer forma de expressão do pensamento acarretam como incontestável sequela o atraso e o retrocesso em todas as áreas de conhecimento humano, sobretudo nas artes, na cultura e no desenvolvimento político e educacional de um povo.

Este breve escorço histórico destina-se a deixar assentada a extraordinária importância do tema em epígrafe. A liberdade de expressão alcança relevância de destaque na história mundial e do Brasil, demandando cuidado extremo por todos aqueles que lidam com a interpretação e aplicação deste princípio fundamental para a dignidade da pessoa humana e concretização do regime democrático.

A liberdade de expressão no Brasil

No Brasil, a livre manifestação do pensamento está consagrada na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental conferido a brasileiros e estrangeiros residentes no País.

Consolida-se como verdadeira essência do Estado Democrático de Direito, encontrando fundamento no princípio vetor da dignidade da pessoa humana. “É livre a manifestação de pensamento”, estabelece o inciso IV do artigo 5º da Constituição Republicana. Trata-se a liberdade de expressão de um dos mecanismos através do qual, indubitavelmente, concretiza-se o princípio democrático e se avigora a soberania popular.
O direito fundamental de livre expressar o pensamento, as ideias e opiniões, compreende todos os meios e formas possíveis e imagináveis de comunicação, escritas ou faladas, impressas ou pela Internet e também por meio da arte, englobando qualquer conteúdo e tema, vedada terminantemente qualquer tipo de censura.

E como direito multifacetado, é através da liberdade de expressão que se concretiza outro direito fundamental, o do acesso a informação, também assegurado pelo artigo 5º da Constituição Federal, especificamente nos incisos XIV e XXXIII, bem como no inciso II do §3º do artigo 37. Esse direito de acesso tem como premissa lógica o direito de buscar e receber informações e ideias. Materializa-se assim, com a liberdade de expressão, a cidadania e a manutenção da democracia.

Esta forte vinculação entre livre expressão do pensamento e democracia é notavelmente defendida pelo filósofo inglês Alexander Meiklejohn. Segundo ele, para que um sistema democrático funcione adequadamente, o eleitorado deve estar bem informado sobre todos os pontos de vista. Uma democracia exige que os eleitores participem e sejam adequadamente informados, sem restrições ao livre fluxo de ideias, informações e opiniões.

Para Meiklejohn, a democracia não será fiel ao seu ideal essencial se os que estão no poder mostram-se capazes de manipular o eleitorado, ocultando informações e reprimindo críticas. É de Meiklejohn a célebre afirmação: “o essencial não é que todos devam falar, mas que tudo o que valha a pena seja dito”.

No entanto, embora vedada a censura, afigura-se correto dizer que a liberdade individual de manifestação do pensamento não é absoluta. Seu exercício encontra limites. O autor de manifestações abusivas responde por elas, inclusive criminalmente. E isto porque a Constituição Federal protege outros direitos de igual relevância, como a intimidade, o segredo da vida privada, a honra e a imagem das pessoas, e que uma vez violados através de manifestações radicais, discriminatórias e abusivas, ensejarão como consequência certa o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (CF, art. 5º, inciso X).

São intoleráveis também os discursos de ódio, configurando abuso da liberdade de expressão. Incorrerá o infrator na prática de diversos crimes, destacando-se a homofobia, a xenofobia, o antissemitismo, e o racismo, este inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (CF, art. 5º, inciso XLII, e Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989). E nem poderia ser diferente, pois estabelece a Constituição Federal como um dos objetivos fundamentais de nosso País promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, inciso IV).

Como dito, são garantias constitucionais de igual estatura, pois compreendidos nos direitos à vida e à igualdade, e que também encontram substrato no princípio vetor da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III).

Significa dizer, enfim, que se a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País é garantida pela Constituição a livre e plena manifestação do pensamento, deles também se exige e cobra-se, no ato de expressar-se, o pleno respeito a direitos constitucionais alheios. A esses mesmos direitos e imposições, como não poderia deixar de ser, submetem-se os membros do Ministério Público, como se verá adiante.

O Ministério Público e a liberdade de expressão

A Constituição Federal destinou ao Ministério Público a relevante missão de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127). Também lhe confiou a titularidade privativa da ação penal pública, e bem assim do inquérito civil, o controle externo da atividade policial, e a atribuição de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (art. 129, incisos I, VII e VIII).

Como agente público e serviente ao povo, ao membro do Ministério Público são prescritos diversos deveres e obrigações, todos previstos na Constituição Federal e em diversas leis infraconstitucionais, destacando-se a Lei Complementar Federal n. 75, de 20 de maio de 1993 (estatuto do Ministério Público da União) e a Lei Complementar Federal n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).

Não custa lembrar que o membro do Ministério Público é antes de tudo um cidadão, e como tal tem igualmente garantida a livre manifestação de pensamento, submetendo-se ele também, como toda e qualquer pessoa, ao necessário dever de respeito aos direitos constitucionais alheios. Pois não se imagina, tampouco se admite, que a condição de membro do Ministério Público possa constituir alguma capitis diminutio, que o faça perder ou de alguma forma ter reduzida sua condição de cidadão – tampouco está à margem ou acima da lei, por óbvio. Está, sim, como dito, no mesmo patamar de todo e qualquer cidadão, sujeito aos mesmos direitos e deveres previstos na Carta Magna.

Diversos são os dispositivos legais, e mesmo atos administrativos, que estabelecem aos membros do Ministério Público normas padrão ou regras de conduta para o fiel e lídimo exercício de suas funções. E muitas dessas normas e recomendações dispõem diretamente ou guardam relação com a forma e o conteúdo de suas manifestações, sejam elas processuais ou não, sejam elas públicas ou no âmbito de sua vida privada.

Tais preceitos buscam conferir conformidade e evitar conflito com outros valores e direitos igualmente relevantes, como a intimidade das partes envolvidas no processo, o segredo da vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Além disso, visam proteger o próprio membro do Ministério Público, evitando a exposição negativa e o descrédito perante a sociedade, questões de suma importância para o desempenho de suas funções.

Para o tema em análise, o estatuto do Ministério Público da União (Lei Federal n. 75, de 20/05/1993), a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Federal n. 8.625, de 12/02/1993) e a Lei Orgânica Estadual do Ministério Público de São Paulo (Lei Complementar Estadual n. 734, de 26/11/1993), trazem normas de substancial relevância.

Registra-se também que no estado de São Paulo o Ministério Público há tempos conta com o “Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo”, aprovado pelo Ato Normativo n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, que suscita importantes orientações relativas à atividade funcional.

De igual modo, o Conselho Nacional do Ministério Publico (CNMP) fixou diretrizes orientadoras através da Recomendação de Caráter Geral CN-CNMP n. 01, de 03 de novembro de 2016, dispondo sobre a liberdade de expressão, a vedação da atividade político-partidária, o uso das redes sociais e do “e-mail” institucional por parte dos Membros do Ministério Público.

No próximo artigo, vamos falar sobre a liberdade de expressão do membro do Ministério Público nos processos e procedimentos em que oficia.

Saad Mazloum é Procurador de Justiça e membro eleito do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo.

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