Violentei uma menina!

Por Ronei Costa Martins Silva

Foi há 20 anos e acontecia sistematicamente. Meu pai havia deixado a família com três filhos e por esta e outras razões vivíamos uma vida de privações. Eu trabalhava numa oficina mecânica durante o dia e a noite estudava. A escola era longe de casa e para economizar algum dinheiro eu evitava usar o ônibus, vencendo o trajeto entre a escola e minha casa caminhando noite adentro. Minha chegada em casa, todas as noites, coincidia com o encontro dos ponteiros do relógio: meia noite. E então, nesta hora emblemática, começava o martírio violento, do qual ainda hoje busco remissão.

Nas noites, ao primeiro sinal de minha chegada, minha mãe, sem saber que errava, arrancava minha irmã da cama para preparar meu jantar. A menina, de apenas 11 anos, tinha seu descanso interrompido para esquentar o que tinha nas panelas, ajeitar a mesa e depois, lavar a louça.

Não culpo aqui minha mãe. Ela também não percebia. Em sua formação jamais aprendera diferente. Para ela a mulher nascia para servir ao homem e minha irmã estava treinando comigo, para, no futuro, servir ao seu marido. Era um estágio.

Nas noites eu nada dizia e por nada dizer tornava-me cúmplice daquele ato violento imposto à uma menina inocente. Uma violência naturalizada, sutil, imperceptível, que se não formos suficientemente sensíveis à dor do outro, jamais perceberemos. Eu próprio percebi minha maldade décadas mais tarde. E hoje sei que cometi este erro, sendo cúmplice e co-autor daquela violência.

A questão é que quando pensamos na violência, logo nos vêm à mente uma situação de senso comum, na qual o agressor, utilizando-se de uma arma, ou da força agride alguém. E em regra geral nunca estamos na posição de violentos, mas sim, sempre, de espectadores ou violentados, como se nossos atos fossem sempre não-violentos. E esta equivocada percepção nos impede de enxergar a violência cotidiana, doméstica, paulatina, que é silenciosa e que por ser constante e repetitiva, produz sequelas tão severas quanto quaisquer outras categorias de atos violentos mais explícitos.

Naquelas noites eu próprio poderia esquentar minha janta, comer e depois lavar a louça, mas nunca o fizera. Pior ainda, eu consentia. Aceitava silenciosamente que uma menina de 11 anos tivesse sua noite de sono interrompida para satisfazer aos meus interesses. Eu permitia sistematicamente uma situação de violência familiar imposta à minha irmã, ainda menina, apenas pelo fato de ela ser mulher.

Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista e pós graduado em arquitetura e arte sacra. Possui diversas obras de arquitetura sacra espalhadas por São Paulo e outros três estados. Em 2018 foi convidado para presentear o Papa Francisco com uma obra sua, a Cruz da Esperança. Possui onze obras de arquitetura selecionadas para Mostras Nacionais, sendo duas em 2017 e nove em 2019.
Também é pesquisador da máscara do palhaço há 21 anos, tendo atuado em hospitais, presídios e outros espaços de vulnerabilidade social. É pai do Benício

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