Os pais podem recusar a vacinação dos filhos?

por Márcio de Sessa
A vacinação jamais deve ser entendida como uma escolha individual. Estamos a tratar de uma medida de saúde que somente produz efeitos se realizada em massa na coletividade, o que se conhece por imunização de rebanho.

Fosse a vacinação um direito individual, sem que recebesse o tratamento de política pública pelo Estado, viveríamos um caos na saúde pública com altos índices de varíola, rubéola, poliomielite, tuberculose, etc, etc. É, pois, a imunização da coletividade determinante para o bem estar de saúde de um único indivíduo.

Neste sentido, a sociedade brasileira completou mais de 218 anos de experiências com vacinações e suas resistências. A primeira vacina chegou ao Brasil Colônia em 1804 e logo em 1808, com a vinda da Coroa, foi criado o primeiro órgão com função de cuidar da vacinação massiva: Junta da Instituição Vacínica da Corte. Até 1904, durante 100 anos, houve intenso debates sobre a vacina no Brasil, quando Oswaldo Cruz, mesmo diante a Revolta da Vacina, conseguiu significativos avanços. A discussão não acabou, mas em 1980 a varíola foi erradicada graças à vacina.

Os marcos de saúde pública em nossa história mostram que revoltas contra vacinas não são novidades e, para o bem da comunidade, sempre se mostraram equivocadas as dúvidas que lançaram quanto à eficácia do imunizante. Mas as revoltas conseguiram a proibição do uso da força pelo Estado para obrigar a vacinação, como foi com a varíola em 1904; no entanto, no decorrer histórico, as restrições administrativas impostas aos revoltosos supriram a necessidade da violência e esta passou a ser a dinâmica do Estado: multas, restrições em programas sociais, restrições na convivência escolar, uma série de medidas passaram a ser adotadas para obrigar indiretamente a vacinação em massa.

Foi no contexto deste aprendizado histórico que a sociedade brasileira reconheceu na Constituição de 1988 que é dever da família, em primeiro lugar, “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, (…) além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência (…)”. Depois da família compete à sociedade os mesmos deveres e, por fim ao Estado, cabendo a este a “promoção de programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem”.

A relação, então, é complementar: o dever de assegurar a saúde de crianças e adolescentes compete aos pais, primeiro, porque também compete ao Estado promover e ofertar os programas de saúde.

Neste contexto de proteção, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, também assegurou que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Trata-se de obrigação do Estado promover a política pública adequada e autorizada pela ANVISA, no caso, e da família, da sociedade e também do Estado garantir meios para que a criança seja vacinada.

Alguns pais invocam o poder que detêm sobre seus filhos para recusar a vacinação. Porém, o próprio exercício do poder familiar (o poder que os pais exercem sobre os filhos com os cuidados, a proteção, a criação e a educação, de modo geral) deve ser entendido como um direito conectado à realidade social, que respeite as determinações legais, sobretudo, porque amparadas em experiências históricas que sempre demonstraram a segurança e as vantagens da vacinação coletiva, cujo primeiro interessado é o próprio indivíduo. O poder familiar não é um poder absoluto.

As crianças e adolescentes ocupam um lugar vulnerável por não deterem, ainda, completo poder de discernimento e dependem dos cuidados de adultos e suas tomadas de decisões. Deixar uma criança ao abandono, negligenciar cuidados com sua saúde, pode acarretar a própria perda do poder familiar. Mesmo nos casos em que a família invoca uma motivação religiosa, filosófica, política, seja qual for, é pacífico nos Tribunais brasileiros que prevalece o direito à vida, ou seja, de vacinar a criança obrigatoriamente em detrimento da liberdade religiosa ou filosófica dos pais, sem uso da força, mas podendo se valer de medidas administrativas restritivas.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre a obrigatoriedade da vacinação em relação ao Covid19, entendendo que compulsoriedade não significa utilizar da força para atingir o objetivo, mas na determinação de medidas que forcem, indiretamente, sua realização e que podem ser adotadas inclusive pelos municípios.

O ECA, nos casos de recusa dos pais em vacinar os filhos, prevê a aplicação de multa de até R$ 24.000,00. Em eventual tragédia deliberada, ou seja, a morte de um filho por negligência dos pais em recusar a vacinação, diante este cenário jurídico pacífico quanto à obrigação do cuidado individual e coletivo com vacinas, os pais poderão até responder pelo crime de homicídio doloso, quando se teve a intenção de provocar o resultado morte.

A responsabilidade dos pais quanto a vacinação dos filhos transcende o interesse do núcleo familiar, não se trata apenas de uma vontade com base em opiniões pré-fabricadas por pessoas que não são cientistas, mas cuida-se da saúde de crianças e adolescentes no contexto comunitário, quando uma criança não vacinada representa um perigo para todas as demais e seus respectivos núcleos familiares. Portanto, as condições para a responsabilização cível e criminal estão dadas e devem ser consideradas pelos pais resistentes. Se olharem para a história verão, primeiro, que estão equivocados ao não confiar nos imunizantes e, segundo, estão numa batalha perdida.

O debate público sobre vacinas já foi amadurecido o suficiente ao longo da história para não permitir atos irresponsáveis e contrários à ciência e a vida em comunidade, afinal, como decidido pelo STF, vacina registrada em órgão de vigilância sanitária, prevista no programa nacional de imunizações, com aplicação obrigatória determinada em lei, com base em consenso médico científico, é obrigatória a vacinação e “não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.

As vacinas contra o covid19 atendem todos estes requisitos e os pais devem garantir a vacinação dos seus filhos. A única novidade nesta quadra histórica foi a promoção da dúvida sobre a eficácia das vacinas contra covid19 não somente por populares, mas pela própria Presidência da República e alguns Ministros da Saúde. O Estado, por seu chefe do Executivo, um capitão, promoveu ideias e atos de extrema irresponsabilidade contra seu próprio povo. Isso é inusitado e há de acabar.

Obs1: vacinem seus filhos também contra o sarampo, esta doença estava erradicada no Brasil, mas, com a queda na vacinação, retornou com força nos últimos anos.
Obs2: Se você tem medo das vacinas atuais, deveria conhecer como eram feitas as primeiras vacinas.

Márcio de Sessa é advogado, professor, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil, mestre em Direito, atua com planejamento sucessório e patrimonial e direito imobiliário.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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