Memórias de um genocídio

por Farid Zaine
@farid.cultura

Quando se fala em genocídio logo se pensa em algo distante, coisa acontecida em
lugares que não conhecemos, paisagens estranhas. Não é fácil imaginar um extermínio de milhares de pessoas num cenário familiar, com gente se vestindo quase como a gente agora, morando em casas e prédios como os nossos.

Pensar que mais de 8.000 bósnios foram barbaramente exterminados há pouco mais de 25 anos nos aproxima de um fato histórico bem recente, e que manchou a humanidade com mais uma guerra sangrenta, uma das piores do período na Europa após a Segunda Guerra Mundial. No início dos anos 1990, quando a Iugoslávia deixou de existir oficialmente (1992), resultando em vários países independentes, entre eles a Sérvia e a Bósnia e Herzegovina, muito sangue rolou por aquelas plagas.

Um filme de 2020, com seu poderoso roteiro, com fatos e personagens criados para retratar um acontecimento trágico e verdadeiro, chegou para mostrar ao mundo essa ferida aberta. Trata-se de “Quo Vadis, Aida?”, que representou a Bósnia e Herzegovina no Oscar 2021, na categoria de Melhor Filme Internacional, chegando aos cinco finalistas. A Bósnia, com a guerra, já levou um Oscar dessa categoria, em 2002 , pelo original e instigante “Terra de Ninguém”.

Não dei spoiler no começo deste artigo. É muito conhecida a história do genocídio
acontecido em Srebrenica em 1995 , sob o comando do general Ratko Mladic, assim
como o cerco a Sarajevo, longo e arrasador. Para contar esse drama a diretora Jasmila Sbanic se valeu da criação de personagens fictícias , que têm incrível credibilidade, misturadas aos cidadãos reais que sofreram os horrores daquele período.

Aida , vivida com intensidade pela atriz Jasna Duricic, é uma tradutora e intérprete, a
ponte de ligação entre militares holandeses da ONU e os invasores sérvios. A
população de Srebrenica é obrigada a abandonar suas casas sendo confinada a um
abrigo que, teoricamente, teria a segurança da proteção das forças da ONU, um
fracasso ainda hoje estudado.

Aida se move dentro de um cenário de opressão e terror, traduzindo e interpretando
para ambos os lados o que ela ouve das negociações e ameaças. À medida que o filme avança, os tensos minutos iniciais das conversas entre oficiais traduzidas por Aida só dão lugar a um progressivo aumento de angústia e de desespero para o espectador.

Os que sabem o desfecho , pelo conhecimento dos fatos da história recente, e os que sequer se lembram de uma guerra entre bósnios e sérvios, serão igualmente abalados pelo ritmo do longa, que conduz a plateia a uma viagem de sobressaltos e dolorosas expectativas. Aida tenta fazer de tudo para ajudar, ela é o símbolo da luta sem tréguas de quem tenta salvar seus entes queridos: entre as milhares de pessoas no abrigo em que foram confinadas, estão seu marido e seus dois filhos, jovens belos e saudáveis, com todo o futuro pela frente, assim como muitos dos milhares de homens e meninos muçulmanos cuja vida foi interrompida em tão infame episódio.

Bem mais recente ainda, felizmente houve um desfecho a ser comemorado: o
genocida , general Ratko Mladic, preso desde 2011, em 2017 foi condenado à prisão
perpétua. Sua busca, sua captura e sua condenação eram condições inegociáveis para que a Sérvia fosse aceita na União Europeia, processo que continua.

“Quo Vadis, Aida?” é um drama poderoso, ao qual ninguém fica indiferente. O filme
emociona e inquieta ao expor uma ferida que ainda sangra muito, e que traz
sofrimento e dor quando essa história é contada. Mas é preciso que seja mesmo
contada e recontada, e como é bom que consiga um significativo eco por causa de uma indicação ao Oscar, o que de imediato já produz interesse no mundo todo.

“Quo Vadis, Aida?”, da Bósnia e Herzegovina, ao remexer no baú das trágicas
lembranças do genocídio em Srebrenica, e “Collective”, ao revelar um tenebroso
escândalo no sistema de saúde da Romênia, deram a essa categoria do Oscar em 2021 um significado muito importante para a função do cinema, com o corajoso e inovador trabalho de promissores cineastas. O prêmio foi, merecidamente, para o dinamarquês “Druk – Mais uma Rodada”, de Thomas Vinterberg, mas as razões dessa vitória ficam para outra matéria.

“Quo Vadis, Aida?” está disponível para aluguel ou compra no Google Play.
Cotação: *****ÓTIMO

Foto: Reprodução Internet

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