Juízo 100% digital: a terceirização do ato judicial

por Carlos Gideon Portes e Felipe Zalaf

Após a implantação do denominado Juízo 100% digital pelo CNJ por meio da Resolução nº 345/2020 (e atualizada pela Resolução nº 378/2021), muito se tem falado das vantagens e desvantagens desta tecnologia.

Como é uma tecnologia que, além de seguir uma tendência mundial, veio para aprimorar o Poder Judiciário, será muito difícil que deixe de ser utilizada, ou seja, a tendência é a expansão de seu uso e seu aprimoramento.

Desta forma, cada vez mais os operadores do Direito uma vez utilizando esta ferramenta, necessitam adaptarem-se a ela, bem como aceitarem certos encargos dela decorrentes.

Claro que a ferramenta tem como premissa, por meio da tecnologia, trazer celeridade ao processo, permitindo uma dinâmica mais ágil de todos os agentes, dentre outras vantagens, mas traz consigo também alguns desafios. Dentre estes, um tema tem sido visto com certa reserva, pois causa incômodo e tem sido equiparado, inclusive, a uma possível terceirização de ato judicial.

Voltemos uns anos, em meados de 2006, quando foi publicada a Lei 11.419/06 que disciplinou a informatização do processo judicial, alterando o Código de Processo Civil. Naquela época, há 16 anos, ainda não se tinha no mundo jurídico ferramentas que acompanhassem a evolução tecnológica como temos hoje, mas as alterações propostas já demonstravam uma posição de vanguarda e a preocupação do Poder Judiciário em caminhar junto com a evolução da sociedade e do mundo.

Muito tempo se passou e várias ferramentas foram sendo criadas e operadas pelos integrantes do Poder Judiciário e pelos escritórios e pela advocacia.

Em abril de 2022 o CNJ expediu a Resolução nº 455 que instituiu o Portal de Serviços do Poder Judiciário (PSPJ), na Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br), para usuários externos.

O Diário de Justiça Eletrônico Nacional (DJEN) constitui a plataforma de editais do CNJ e o instrumento de publicação dos atos judiciais dos órgãos do Poder Judiciário.

O referido DJEN pode (deve) ser utilizado como instrumento para publicação das decisões proferidas em processos administrativos de competência das corregedorias ou em processos administrativos disciplinares (PAD) instaurados contra magistrados, servidores ou agentes delegados do foro extrajudicial.

Além disso, o DJEN substitui os atuais diários de justiça eletrônicos mantidos pelos órgãos do Poder Judiciário e estará disponível no Portal de Serviços e no sítio do CNJ na rede mundial de computadores.

Diante deste novo cenário, cada vez mais se vê a necessidade de o(a) advogado(a) efetivamente acessar a referida plataforma do DJEN para se valer ciente dos atos judiciais, como intimações, despachos, sentenças e outros.

E é justamente destes atos judiciais que sempre foram praticados pelos agentes do Poder Judiciário, que reside a segurança do operador do direito, que uma vez optando pelo Juízo 100% digital estará, efetivamente, tendo de acessar a plataforma do DJEN (ou de todos os Tribunais, com suas peculiaridades, pois não há um sistema unificado) para, por ato próprio, tomar ciência e ser intimado acerca dos atos judicias, sob pena de estes serem, após certo tempo, tidos como efetivados, tacitamente, culminando na preclusão de determinado exercício de direito.

A proposta da discussão não é despavimentar a estrada da tecnologia, mas evidenciar a necessidade de que sejam criadas (ou aprimoradas) as ferramentas necessárias para que o advogado não tenha de cumprir, também, a função de monitorar o processo diariamente para verificar as movimentações ocorridas e a existência de eventuais intimações para a prática dos atos necessários ao impulsionamento do caso e, mais ainda, à defesa dos direitos a ele correlatos.

A agilidade processual que se espera atingir com o emprego da tecnologia não pode implicar no prejuízo da finalidade do processo: a entrega do que é devido a cada parte, ou num aspecto maior, a eficácia do provimento judicial que, espera-se, seja representativa da aplicação da mais lídima justiça.

Este tipo de sistemática está, paradoxalmente, auxiliando o Poder Judiciário, mas está também penalizando o operador de direito, transferindo a ele uma nova responsabilidade, antes inexistente, com o sério risco de mutilar o objetivo do processo.

Novos tempos exigem novas atitudes, mas o objetivo do processo continua o mesmo, e passa por uma cadeia de atos e de responsabilidades, e uma delas, a de ser informado acerca das providências a serem tomadas no curso do litígio, que é de vital importância ao exercício do direito, se for automatizada pelo chamado Juízo 100% digital, terá de ser urgentemente aprimorada, pois as partes, e os operadores do direito, não podem ser obrigados a exercer o encargo do constante monitoramento de seus casos, praticando atos reservados aos agentes do Poder Judiciário.

Existem ferramentas para corrigir essa defasagem de um sistema que, com certeza, chegou para ficar, mas há de ser tido como um primado, que a segurança não pode ser mutilada em nome de uma pretensa agilização no trâmite do processo, pois o objetivo da justiça não pode perder-se entre bits.

Carlos Gideon Portes é coordenador e Felipe Zalaf é sócio no escritório Cláudio Zalaf Advogados Associados

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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