Deixem as mulheres do Chico em paz

por João Geraldo Lopes Gonçalves

Bom, o leitor feminista e não misógino, ao ler este título, diria que coloco meu lado machista para funcionar ou uma tendência a defender o indefensável. Porém, às vezes, nominar um texto passa a ser tático por conta da ideia de chamar a atenção para seu conteúdo. Um expediente usado diariamente e frequentemente pelos meios de comunicação.

Um título pode dizer literalmente o que se escreveu ou se trabalha na subjetividade e na linguagem cifrada. Aliás, escrever em metáforas foi muito comum nos 21 anos de trevas neste País, em que uma ditadura usou de mecanismos de censura para proibir que obras de arte fossem veiculadas junto à população.

A censura federal se instalou, de fato e com violência, a partir do AI-5 (Ato Institucional), que fechou de vez as liberdades democráticas e promoveu o terror, o assassinato de milhares de brasileiros e brasileiras. As artes foram um dos alvos mais atingidos pelos órgãos de repressão.

Tom Zé conta que cansou de ter que ir a Brasília se explicar para uma censora, a qual ele a chamava de Dona Solange, sobre trechos ou letras inteiras de suas canções, isto quando não passava horas e horas no DOPS pra se explicar.

Foi comum no Brasil de 1968 até 1979 o uso da tesoura. No último ano citado, instituiu-se a anistia, que embora não foi ampla e foi restrita, diminuiu a censura às artes, bem como à imprensa.

De acordo com o cite Censura Nunca Mais, há dezenas de artistas que sofreram perseguições e viram suas obras serem censuradas e sem possibilidade que as pessoas pudessem conhecer e curtir seu trabalho. Taiguara, por exemplo, chegou a confessar seu desânimo com o Brasil e sua intenção de não morar mais aqui, pois não conseguia mostrar sua obra.

O compositor foi um dos mais censurados na ditadura. Ao lado dele, podemos afirmar Odair José e sua obra voltada a assuntos de comportamento, considerados nocivos pelos militares, como a pílula, a prostituição e outros.

Chico Buarque e Holanda fecha este ciclo de artistas que viam seu trabalho ser destruído por burocratas trogloditas que nada entendiam de arte. Em 1968, Chico, ao saber que seria preso, resolve se exilar na Itália, onde sua mulher deu luz a sua primeira filha Silvia. Na Europa, Chico compôs e gravou discos. Na volta, no início dos anos 70, o compositor voltou com uma linguagem diferente. O Chico lírico e romântico deu lugar ao engajado, com visão mais coletiva do mundo e política.

Mas a censura continuou rondando a casa buarquiana e aí as mudanças acontecem.

A linguagem de escrever abusando da língua portuguesa projeta a metáfora e o que se lê não é exatamente o que se tem para dizer. “Apesar de você”, canção lançada logo que Chico voltou da Itália, é uma critica ao regime, mas na época o cantor argumentou se tratar de uma mulher muito brava com o marido.

Desde as primeiras canções, ainda na fase lírica, Chico Buarque busca falar de mulheres. Os motivos desta escolha se explica: a Artista nasce em uma família onde mulheres são maioria, é pai de meninas e tem como principais intérpretes de suas canções cantoras, como Maria Bethânia, Gal Costa, Elis Regina e Nara Leão, só para ficar nestes exemplos.

Com um tempo, os especialistas vão detectar uma tendência muito forte nas obras de Chico Buarque de Holanda: a constituição do Universo Feminino.

São mais de trezentas canções que percorrem sentimentos, comportamentos, histórias de diversas mulheres. Chico não foge da realidade. Não pinta a figura feminina como santa ou como um adereço de enfeite. Chico é sincero, honesto ao falar delas.

Não esconde o machismo de classe e de gênero a elas imposto. Não titubeia, em denunciar mesmo na linguagem cifrada, a exploração “Macho-Alfa” sobre as mulheres. As críticas ao seu universo sempre vieram de todos os lados. Da direita à esquerda. De movimentos fascistas a feministas. No entanto, jamais ninguém pode negar a genialidade do compositor e sua capacidade de revelar seu conhecimento sobre as mulheres.

Agora, Chico Buarque surpreende a todos mais uma vez.

Revela que não cantará mais em seus shows a canção “Com Açúcar e com Afeto”, gravada por Nara Leão em 1967, no disco Ventos de Maio. O argumento é de que as feministas estavam corretas ao afirmar que a obra tem cunho machista.

É bom explicar que a canção foi feita por encomenda de Nara a Chico. A cantora queria uma letra que falasse de uma mulher que sofresse por conta do marido. O contexto é importante ser colocado: ditadura, necessidade de linguagem sublinhada e com metáforas e o já engajamento e empoderamento de Nara Leão e as lutas feministas.

Penso que Chico tem o direito de cantar o que quiser, mas a História não se apaga, por mais complicado que tal fato seja. O Universo Feminino de Chico Buarque não é um conto de fadas, é real. É contraditório e dialético, como é a História.

Assim, deixem em paz as mulheres de Chico Buarque.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

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