Um balanço do Brasil no final de 2022

Por Leandro Consentino

Neste apagar das luzes de 2022, o Brasil passa por um momento bastante singular de sua História: um país que, internamente, emerge completamente dividido do processo eleitoral, eivado por incertezas no plano político e econômico. Por outro lado, a esperança da correção de rumos em política exterior, situando seus antigos e tradicionais objetivos de política externa parecem trazer o país de volta às mesas de negociações multilaterais em que sempre tomou assento. Vejamos as características desse momento.

Em primeiro lugar, é preciso ter presente que o processo eleitoral recém-concluído no país impõe ao novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva um duplo desafio, tanto na esfera da política institucional como na sociedade civil. Na esfera da política institucional, o grande desafio do novo governo será construir uma base parlamentar sólida ante um cenário adverso que combina a eleição de um Executivo liderado por um presidente da República de um partido de esquerda e um Legislativo majoritariamente composto por partidos mais conservadores.

Tal cenário demandará a construção de um governo mais ao centro, com especial atenção para a distribuição dos postos ministeriais e o correspondente equilíbrio nas bancadas parlamentares e nos governos estaduais, enfrentando também a problemática das despesas orçamentárias, hoje capturadas pelo Legislativo por meio do denominado “orçamento secreto”. Nessa costura política, o papel do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, pode ser fundamental, tanto por sua habilidade de diálogo como por sua trajetória mais associada à centro-direita. Além dele, outros interlocutores desse campo que ajudaram na vitória de Lula, como Simone Tebet e Marina Silva, podem ser fundamentais para tornar o governo menos limitado à esquerda.

Obviamente, Lula sofrerá pressões e a tentação de um governo mais voltado ao ideário de seu próprio partido, o Partido dos Trabalhadores, mas caso pretenda governar apenas com a esquerda, minoritária no Congresso Nacional, pode acabar com um governo paralisado e um risco iminente de impedimento de seu mandato, exatamente como ocorreu no último governo petista, capitaneado por sua sucessora Dilma Rousseff. Cabe ter presente, inclusive, que a oposição a seu governo será muito mais visceral neste mandato do que nos dois primeiros, espelhando a polarização presente na sociedade.

Esta polarização, na qual reside a segunda face do desafio do novo governo, demandará um esforço de pacificação social significativo, uma vez que a figura de Lula despertava a rejeição de praticamente metade do eleitorado que compareceu às urnas no segundo turno, sem levar em conta uma ampla parcela que se absteve de escolher um candidato naquele pleito. Dessa maneira, o novo governo precisará reforçar o discurso que o presidente eleito fez no anúncio de sua vitória, afirmando que governa para todos e que “não haveria dois Brasis”, evitando a armadilha de engrossar alguns protestos minoritários contra a legitimidade do processo eleitoral.

O caminho mais seguro, portanto, parece ser o caminho do meio. Além do espaço político e do esforço de reconciliação social, tal discurso precisa também estar focado em uma agenda que concilie a responsabilidade fiscal à emergência social que o país enfrenta, com milhões de pessoas em situação de pobreza/miséria e indicadores macroeconômicos preocupantes no crescimento do produto, na inflação e no desemprego.

O desafio em tela passa pela dificuldade de erigir uma política econômica, cujo norte ainda não ficou claro, que concilie uma expansão responsável dos gastos públicos com as políticas sociais necessárias para o enfrentamento da atual crise socioeconômica. Enquanto as diretrizes de tal política e o nome de seus responsáveis não são divulgados, o país atravessa um período de incertezas, as quais tem sido responsáveis por reflexos no mercado financeiro com alta no preço do dólar e índices da bolsa de valores em queda.

A dúvida que se coloca é fruto de uma ambiguidade do próprio Lula e de seu Partido dos Trabalhadores com relação à política econômica. Com origens em propostas radicais à esquerda, Lula soube, em seu primeiro mandato, assumir um ideário mais liberal e de compromisso com uma política econômica fiscalmente responsável, herdade de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.

Em seu segundo mandato, contudo, a crise econômica de 2008/2009 abriu caminho para uma gestão anticíclica e expansionista do gasto público, mantida e ampliada nos governos de sua sucessora, Dilma Rousseff, a qual acabou levando o país a uma crise de severas consequências, abrindo caminho para uma inflação persistente, uma queda do PIB e, finalmente, altos índices de desemprego que, de certa forma, ainda persistem até os dias atuais.

Nesse sentido, a questão que se coloca sobre a economia é se Lula vestirá o figurino de seu primeiro mandato, focando na austeridade e nas reformas constitucionais – com foco na administrativa e na tributária – que o país precisa para retomar seu crescimento ou se sustentará uma política econômica expansionista e, no médio prazo, insustentável para as contas públicas.

Com as recentes declarações erráticas sobre a responsabilidade fiscal e a hesitação em nomear uma equipe econômica afinada com o mercado, o novo governo dá a entender que pode estar cedendo às pressões da esquerda e enveredando pelo segundo caminho, causando reações críticas da imprensa, dos analistas e até mesmo de políticos e técnicos de centro e de direita que lhe deram um voto de confiança na disputa contra Bolsonaro, como o ex-ministro Henrique Meirelles.

Cumpre observar, contudo, que se o legado e o futuro da política econômica são ambíguos, não podemos dizer o mesmo da política externa. A despeito de alguns equívocos pontuais, marcados sobretudo pela ideologia e pelo antiamericanismo que caracterizam a esquerda latino-americana, o legado da política exterior de Lula foi amplamente positivo para o país durante seu governo, sobretudo em comparação com aquele deixado atualmente por Bolsonaro.

A imagem de um carismático ex-operário que venceu a pobreza e chegou à Presidência da República conjugado a um histórico pós-redemocratização e a um bom momento para o país em pleno boom das commodities agrícolas levou o país a viver um excelente momento na primeira década do novo milênio, colocando-se em posição privilegiada em negociações internacionais, sobretudo em áreas de comércio, desenvolvimento e de meio-ambiente.

O contraste com o atual governo não poderia ser mais flagrante, na medida em que leva a cabo uma política externa pautada em alianças ideológicas e pouco presente nas negociações internacionais de grande relevância, além de controvertidos posicionamentos na seara ambiental e de direitos humanos. Tais ações culminaram, inclusive, com o relativo isolamento do Brasil no cenário internacional, levando Bolsonaro a sequer comparecer a dois recentes eventos de extrema relevância: a cúpula do G-20 e a COP-27, no Egito.

Dessa forma, o principal objetivo do novo governo nessa seara será justamente reverter a imagem internacional atual do país e reavivar as antigas conquistas internacionais do país no plano multilateral com destaque para as áreas já citadas de comércio, desenvolvimento e meio-ambiente. Nesta última área, inclusive, o presidente eleito já envidou seus primeiros esforços ao comparecer, pessoalmente, na COP-27, com um discurso marcadamente distinto do atual governo e amplamente festejado pela comunidade internacional.

A questão ambiental é relevante para o Brasil não apenas pelos esforços de conservação em si, mas por sua íntima conexão com o agronegócio, responsável direto pelo crescimento e pela geração de empregos em uma economia dominada em larga medida por esse setor. Como um ator importante na agricultura, pecuária e na geração de energia, o Brasil não pode prescindir da agenda ESG – governança ambiental, social e corporativa – para garantir o intercâmbio comercial e financeiro para além de suas fronteiras nacionais.

Para além dos temas em si, a correção de rumos na política exterior também deverá preconizar a reativação de parcerias com aliados tradicionais e ressignificar outras, sobretudo à luz do atual contexto internacional, significativamente mais complexo do que aquele em que Lula esteve inserido quando foi presidente pela primeira vez. No caso dos parceiros tradicionais, figuram os Estados Unidos e a União Europeia, além dos vizinhos latino-americanos. Já no caso dos aliados mais recentes, a retomada de parcerias com os BRICS e com países africanos e do Oriente Médio remontam ao período do petista no poder, num esforço diplomático denominado à época como Sul-Sul.

A relação com os Estados Unidos, estremecida desde a eleição de Joe Biden contra Donald Trump, precisará ser retomada com certas nuances, face ao conflito tácito que os norte-americanos atualmente travam com a China. Caberá ao novo governo tomar uma salutar equidistância entre ambos, evitando que o alinhamento a um dos polos possa comprometer os interesses nacionais do Brasil no futuro.

Já as relações com os países da União Europeia precisam ser retomadas de maneira tanto pragmática quanto lastreada em pautas caras ao bloco, sumariamente abandonadas/restritas durante o governo Bolsonaro. Um importante exemplo é a retomada do acordo entre Mercosul e União Europeia, travado devido à indisposição do governo Bolsonaro em negociar pautas ambientais.

Por fim, a reaproximação do Brasil com os vizinhos da América Latina representa um duplo ativo para o novo governo: além de reforçar a integração em seu entorno, onde o país exerce uma liderança natural pelo tamanho de sua economia e de suas características geográficas, a vasta maioria dos países da região vive hoje uma reedição da onda de esquerda que tomou o continente no período em que Lula foi presidente. Dessa maneira, a identidade ideológica também deverá favorecer os negócios e parcerias tanto no plano bilateral como na (re)construção de mecanismos mais amplos de integração como os combalidos Mercosul e UNASUL.

O maior risco dessa aproximação, sobretudo de caráter ideológico, pode residir no confronto desta aproximação com os demais aliados, principalmente ao tomar partido de regimes autoritários de esquerda como o venezuelano e o nicaraguense. Tal postura, outrora mais tolerada, hoje se converte em preocupação, dado o novo cenário mundial, sobretudo em face de uma aliança destes países com potências do oriente como a Rússia e a China.

Este registro nos leva aos parceiros mais distantes e culturalmente mais distintos do Brasil, mas cujo interesse na emergência de uma nova geografia mundial alimenta parcerias como os BRICS e os acordos bilaterais como aqueles realizados com países africanos e árabes. Nesses acordos, além do óbvio interesse comercial, prevalece um entendimento político sobre uma alternativa à globalização capitaneada pelos Estados Unidos e pela União Europeia.

Nesse momento, onde o conflito velado entre países ocidentais e orientais – mas sobretudo entre democracias e países autoritários – parece estar dando a tônica das relações internacionais, a postura do novo governo brasileiro precisa ser muito cuidadosa, a fim de que sua postura de aproximação com esses novos aliados não estremeça as relações com os parceiros mais tradicionais, principalmente no que diz respeito às delicadas questões de defesa e segurança nacional.

O Brasil, apesar de um país com tradição pacífica de solução de controvérsias, não pode ignorar as ameaças presentes nas questões de defesa e segurança, sendo a primeira delas a porosidade de suas fronteiras que tem favorecido o narcotráfico, responsável em grande medida pela grave crise de segurança pública que atinge o país há décadas, com índices de violência maiores que muitos países em situação de guerra.

Além disso, a questão das fronteiras também se impõe na problemática ambiental, principalmente na área da chamada Amazônia Legal e Pantanal, locais onde o assédio de madeireiros e garimpeiros ilegais tem sido responsável por graves violações de nossa soberania e de nossa legislação, comprometendo os esforços do país em prol da sustentabilidade e da preservação dos biomas. Nesse aspecto, também desponta a questão da proteção da costa brasileira, denominada pelas autoridades como Amazônia Azul, com especial atenção para a questão ambiental e para a segurança energética devido aos poços petrolíferos da camada pré-sal.

Por fim, como já pontuamos, as relações do Brasil com países de diversas matizes político-ideológicas traz à tona uma preocupação tanto na esfera interna como externa. No plano interno, dada a radicalização do último processo eleitoral, envolvendo inclusive certos setores das Forças Armadas, uma sinalização de proximidade muito grande com alguns aliados de esquerda pode colocar em risco a unidade e a hierarquia no meio militar, ainda que de forma pouco disseminada e com baixa capacidade de mobilização.

Já no plano externo, é importante ter presente os constrangimentos que o alinhamento a determinados parceiros pode gerar nos outros, sobretudo se os atuais conflitos, que hoje se dão de maneira tácita, acabarem por escalar para confrontação aberta. Em um eventual conflito bélico entre esses países, o Brasil não poderá se manter em neutralidade e, a exemplo do que ocorreu na Segunda Guerra Mundial, deverá assumir uma posição clara.

Ademais, as novas ameaças ligadas à inteligência artificial e cyberataques têm encontrado terreno fértil no Brasil, dado que as Forças Armadas brasileiras permanecem algo obsoletas na detecção e no combate a esse tipo de enfrentamentos, tornando o país bastante vulnerável para este tipo de confronto, seja de onde vierem as eventuais ameaças futuras neste plano.

A reconversão do Ministério da Defesa em uma pasta comandada por um civil, ao contrário do que foi feito nos governos Temer e Bolsonaro, pode trazer sinalizações importantes sobre esse panorama interno e externo e, a depender do nome do titular, sobre o rumo que o país deve adotar nesta área. Se obedecer ao padrão dos antigos governos, Lula deverá dar especial atenção a esse setor, uma vez que foi responsável pelo reaparelhamento das Forças Armadas e deu prestígio ao setor, nomeando, inclusive, o vice-presidente à época, José Alencar, para a pasta.

Leandro Consentino é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Ciência Política pela mesma instituição. Atualmente, é professor de graduação no Insper e de pós-graduação na FESP-SP.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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