Política e religião devem se misturar? Parte 3

por João Geraldo Lopes Gonçalves

“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. (Dom Helder Câmara)

Em 1980, atuava na Comunidade de Santa Luzia, hoje Paróquia, na região do Jardim Vista Alegre em Limeira (SP), uma das regiões mais pobres da cidade. Era nítido que a pobreza e a miséria rondavam a região, uma das maiores do município. Barracos em terrenos baldios eram os que mais se viam. Neles, grandes famílias de sem-teto habitavam, em casas improvisadas muitas vezes em locais perigosos, de barrancos e no meio do mato.

Em nossa região, as favelas se perpetuavam às margens de riachos no famoso buracão, que fazia divisa com nosso bairro e o Jardim Glória.

Vivíamos um cenário nacional, delicado de ditadura militar e a expansão rápida de uma politica de exclusão social, onde a questão da moradia consistia em um terrível problema social.

Nenhum dos governos mantinham politicas habitacionais que pudessem socorrer os mais pobres. E mais: vivíamos também uma das maiores recessões econômicas de nossa História, onde o desemprego até então batia recordes.

Os governos mantinham uma política de abandono às causas populares e, com a maquina de publicidade, justificava sua atitude, taxando os mais pobres de “vagabundos” e “bandidos”. Tal situação justificava a repressão policial, de uma Rota ou mesmo de sua versão em Limeira, a Operação Misto Quente, contra as populações que moravam nas favelas.

O quadro aumentava o caos dos pobres e trabalhadores que, sem contar com as autoridades públicas, recorriam às igrejas para buscar saídas aos seus problemas.

A Igreja, sobretudo o catolicismo, passava desde o “Concilio Vaticano Segundo” uma das mais extraordinárias mudanças em sua estrutura e concepção. Na Comunidade de Santa Luzia presenciávamos estas mudanças, com um Padre Luís Carlos do Nascimento adepto a um dos movimentos que iram colocar em xeque a própria história do Catolicismo. Falo da Teologia da Libertação e sua influência entre os pobres e, em especial, a Juventude Trabalhadora.

A América Latina vai viver este clima de uma proposta de uma nova Igreja, onde o cidadão passa a ser sujeito de sua própria História e a escreve de forma coletiva, com seus pares os que vivem de sua própria força de trabalho.

Na época, refletíamos que a História deve ser construída buscando denunciar e lutar contra as injustiças feitas contra os pobres e trabalhadores. Diversas faixas pastorais à luz do Evangelho de Jesus Cristo vão surgindo, com o objetivo de conscientizar as pessoas de que o Reino de Deus existe e ele não é no pós-morte e sim aqui e agora.

Este Deus deste reino não era um carrasco que ditava regras e punições e que controlava seus fiéis com um chicote nas mãos, omitindo de que o pecado da morte era a fome e a miséria, produzida por poucos que exploravam os muitos. Pastoral Operária, da Moradia, da Saúde, da Criança, da Catequese participativa, do migrante, da terra e por aí vai.

Estas faixas foram o conjunto de como, já citamos aqui, uma nova forma de ser Igreja: as Comunidades Eclesiais de Base, as CEBS.

Nós do grupo de Jovens da Comunidade tínhamos uma atuação baseada nesta concepção de Igreja, que não se preocupava, com o templo de pedra e sim com o templo vivo, representado no Cristo dos Pobres. Uma de nossas primeiras tarefas foi conhecer a realidade das famílias que viviam em estado de risco, nas favelas da cidade. Nos organizamos e diariamente visitávamos os locais, sem energia, sem água tratada e por aí vai.

O que mais ouvíamos das pessoas era o dilema: “Vivemos assim, porque Deus quer”, frase de uma igreja conformista e de um Deus autoritário e fadado a ter a cara de uma divindade sem sensibilidade e nada afetuoso e amoroso. Ao vivenciar esta realidade, aprendemos com um método da Teologia da Libertação como construir uma nova sociedade.

O Ver, de observar, perguntar e viver determinada situação, nos mostrava o cenário que nossa gente passava. Fazíamos o diagnóstico.

O Julgar, a segunda forma do método, nos apontava o porquê daquela situação, como ela era causada e por quem. O julgamento separava o Joio do trigo.

E por último, o Agir. Feito o diagnóstico, detectado, os porquês e quem eram os responsáveis, a tarefa era buscar soluções para aquele momento.

Os Evangelhos eram a luz de nossas reflexões. Criamos e reproduzimos por toda a comunidade círculos e grupos de estudo da Bíblia e, a partir deles, discutíamos nossa realidade e como enfrentá-las. A frase “Tudo acontece porque Deus quer” era rebatida, com a ideia do livre arbítrio dado pelo divino ao ser humano e o caráter de humanidade de Jesus Cristo.

Com isto, ganha força na Igreja Católica o engajamento politico e social de seus membros, a necessidade de transformar a sociedade no aqui e agora, questionando as estruturas desta mesma sociedade. Partidos Políticos, Centrais Sindicais, organizações de bairro, temas como Gênero/Feminismo/Direito das Mulheres e LGBTQ+, Combate ao Racismo e outros eram na pauta do Catolicismo e de outros credos religiosos.

Naqueles anos 80, a palavra que substituiu o conformismo até os anos 60, predominante na Igreja, era a Opção Preferencial pelos Pobres. A frase vinha se desenhando desde o “Concílio Vaticano Segundo” e vai ser na América Latina que o lema se consolidará, nas duas primeiras conferências, a de Medellín em 1968 e de Puebla em 1979, dos bispos do continente.

A frase que iniciamos este ensaio é de autoria e um dos lideres da Teologia da Libertação e da nova Igreja que se iniciava, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara. Perseguido por militares e alas conservadoras da Igreja, Dom Helder representou a figura que desconstrói a ideia da aceitação da injustiça e da concentração de renda.

A frase acima nos mostra que não basta a caridade de dar comida, mas a obrigação de buscarmos os motivos que geram a fome.

A Teologia da Libertação será o grande entrave para a Teologia defendida pelos Bolsonaristas da Prosperidade. Mas este assunto, conversaremos no penúltimo capítulo deste ensaio.

A todas e todos, um bom final de semana.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

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