Política e religião devem se misturar? Parte 4

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

“Andar com Fé eu vou, que fé não costuma faiá” (Gilberto Gil)

Gil lançou esta obra prima, no LP Um Banda Um de 1982. A letra foi feita em um contexto de ditadura militar e de ressurgimento das lutas democráticas e pelo fim do regime. Uma outra questão importante do cenário vinha a ser o papel da religião na conscientização da massa de pobres e trabalhadores, sobretudo a Igreja Católica e sua ala da Teologia da Libertação.

O compositor baiano, um mítico espiritual a qual suas reflexões são traduzidas em várias canções, trabalha uma constatação e uma conclusão conceitual. Sem se referir diretamente de uma fé oriunda de seitas religiosas, Gilberto Gil conclui que a fé é um sentimento que, embora subjetivo e abstrato, tem sido um instrumento poderoso nas convicções dos brasileiros.

A fé remove montanhas, diz o ditado popular. Feita como uma ponte entre o humano e forças divinas, ela é a combustão para que as pessoas acreditem que suas necessidades e desejos possam ser realizadas, basta ter fé.

Duas teorias sobre a fé tem se desenvolvido ao longo dos tempos:

A primeira delas, trabalhada pelos fundamentalistas e neopentecostais, é da prosperidade, onde basta contribuir financeiramente com agrupamentos religiosos que seus desejos pessoais serão realizados.

A segunda, vinda das Pastorais Populares e seitas progressistas, utiliza do ditado popular Fé em Deus (ou Deuses) e Pé na Tábua. Resumindo, é preciso fazer acontecer, correr atrás de uma vida melhor e não esperar que o sobrenatural ocorra. Uma teoria que a Teologia da Libertação aponta para uma busca coletiva para os problemas.

A fé não é exclusiva de cristãos. As religiões afro, por exemplo, nos indicam os guias e espíritos como as ferramentas para nos ajudar a ter melhores condições de vida, e quase sempre estas divindades, tem aspectos humanos e características humanas. Os agnósticos e ateus também professam a fé. Não sendo privilégio deste ou daquele grupo, a fé nos faz viver. A perda dela tem como consequência a morte literal ou não.

Quando presenciamos bolsonaristas levantarem a bandeira de que a verdade absoluta é fruto dos cristãos, já denota a política de exclusão defendida pelo fascismo brasileiro.

Anos atrás este escrevinhador leu um pequeno livrinho, escrito por um padre ao qual não recordo o nome (prometo informar no ultimo ensaio desta série), que excomunga e condena ao fogo do inferno os não adeptos do cristianismo. Este conceito de que só cristãos irão ao reino dos Céus e são detentores da verdade, foi responsável, e ainda o é, por verdadeiras tragédias, com assassinatos, expurgos, torturas e outros.

Que o diga as Cruzadas na Idade Média, as chacinas de Indígenas em nome de Cristo nas Américas e a escravidão negra, tudo com a bandeira da Igreja Católica. Outro aspecto da Teologia da Prosperidade já citada nestes ensaios é o espiritual em detrimento do engajamento social e politico defendido pela Teologia da Libertação.

O bolsonarismo e seus predecessores, desde a década de 90 do século passado, apesar do discurso da força da oração, participam ativamente da política. Centenas de parlamentares e governantes não tem nenhum pudor em admitir que representam suas seitas e em vários casos seus líderes espirituais.

O centro muitas vezes das reivindicações deste grupo tem sido isenções de impostos, “benesses materiais do estado” e emissoras de comunicação, entre cargos inúmeros nas administrações públicas.

Já a Teologia da Libertação, desde a Conferência dos Bispos Latino Americano de Medellín de 1968, defende abertamente que, com a força da oração e o engajamento pratico e coletivo nas atividades políticas, é possível conquistar a transformação da sociedade. Com isto, o formar para o mundo, com participação direta em entidades de lutas coletivas, foi sempre a tônica.

Mas a diferença crucial entre as duas teologias está na opção preferencial. No século passado, já no final da década de 1990, a revista Veja, trouxe uma matéria em que definia um “novo” movimento na Igreja Católica. A partir de padres cantores, a Veja discorre que a RCC, Renovação Carismática Católica, surgia como uma alternativa ao engajamento político partidário e a tese do dando que se recebe, muito utilizado nos meios partidários, se institucionalizava, com a contribuição em dinheiro sendo fundamental para receber em troca, as bênçãos.

A matéria traz fotos em que senhoras das elites endinheiradas, com suas joias balançando nas mãos e no pescoço, vinham frequentando templos religiosos, dando suas contribuições para as atividades das Igrejas.

Mesmo o repertório musical, que nas décadas anteriores falava de Justiça, Fraternidade, Solidariedade e deu Cristo com a face humana e pobre, são substituídas por letras de um Deus superior, que cobra o tempo todo as obrigações do Cristão. Já a Teologia da Libertação estampa, em suas publicações literárias e ações práticas, a opção preferencial pelos pobres, definida pelo Concílio Vaticano Segundo e as Conferências Episcopais.

Esta definição não exclui ninguém como filhos e filhas de Deus, mas define como prioridade os pobres.

A análise política e econômica, em especial da América Latina e do continente africano, mostra uma realidade de fome, miséria, violência, onde poucos têm muito e muitos têm nada. Não se pode pensar que a saída é a prosperidade individual, paga-se o dízimo e terá comida na mesa. Muito menos achar que só as orações combaterão o extermínio de negros em nossas cidades.

A TL afirma que políticas de Estado é que geram melhores ou piores condições de vida as pessoas. Os políticos é que definem, através de instituições, as regras de convivência entre todos. É preciso enxergar a face de Cristo nos que são excluídos de seus direitos. E isto não ocorre em uma Igreja de pedra e que prega um Salvador abstrato e carrasco, um Deus do Castigo e não da Misericórdia.

Cenas horripilantes ocorridas nos atos antidemocráticos dos fascistas colocam as diferenças de uma Igreja dos pobres e dos endinheirados. Enquanto o Brasil de Bolsonaro criou mais de 35 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, os acampamentos golpistas que rezam, o dia todo, comem feijoada, churrascos de picanha e outras comidinhas.

Tem alguma coisa errada com a fé desta gente, né?

No último texto deste assunto, vamos finalmente responder a pergunta do título. Prometo.

Abaixo a letra completa da canção de Gilberto Gil:

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá

Que a fé ‘tá na mulher
A fé ‘tá na cobra coral
Oh, oh
Num pedaço de pão

A fé ‘tá na maré
Na lâmina de um punhal
Oh, oh
Na luz, na escuridão
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá (olêlê)
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Olálá

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Oh, menina
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá

A fé ‘tá na manhã
A fé ‘tá no anoitecer
Oh, oh
No calor do verão

A fé ‘tá viva e sã
A fé também ‘tá pra morrer
Oh, oh
Triste na solidão

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Oh, menina
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Olálá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá

Certo ou errado até
A fé vai onde quer que eu vá
Oh, oh
A pé ou de avião

Mesmo a quem não tem fé
A fé costuma acompanhar
Oh, oh
Pelo sim, pelo não

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Olêlê
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Olálá

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
(Que a fé não costuma faiá) (olêlê, vamos lá)

Andá com fé eu vou
(Que a fé não costuma faiá) (costuma, costuma a fé não costuma faiá)
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá (costuma, costuma a fé não costuma faiá)
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá (olêlala)
Andá com fé eu vou que a fé não costuma faiá

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.

error: Conteúdo protegido por direitos autorais.