O futuro dos trabalhadores em aplicativos

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

Hoje a coluna vai deixar um pouco o lado opinativo e privilegiar a reportagem e a informação, pegando carona em brilhante matéria deste Diário de Justiça e do debate nacional sobre a regulamentação ou não dos APPs de transporte, alimentação e outros.

O filósofo e advogado Claudio Marques da Silva, causídico em um processo contra um dos aplicativos, cedeu esta sensacional entrevista, onde fala sobre o caso em questão, analisa o sistema e aponta solução para problemas de ordem trabalhista e outros.

Espero que gostem.

No último dia 4 de Outubro, este Diário de Justiça trouxe matéria em que um motorista de aplicativo da empresa Uber venceu ação contra a mesma. O senhor pode relatar o caso?

O caso é relativamente simples. Determinado motorista foi excluído da mais famosa e importante plataforma de viagens do mundo, sob alegação de violação das regras do aplicativo. Quando fomos analisar os fatos, identificamos que a empresa havia usado alegação diversa da real para excluir o motorista, de modo que pleiteamos judicialmente a reativação do perfil do motorista à plataforma, além de fixação de dano moral.

O interessante do caso concreto foi a fundamentação jurídica utilizada, com aplicação de princípio próprio do direito administrativo, que exige fundamentação correta em suas decisões, sob pena de nulidade, ou reconhecimento de desvio de finalidade. No caso concreto, prevaleceu o princípio da autonomia da vontade nas relações privadas, entendendo o judiciário pelo direito de exclusão do motorista da plataforma.

Não obstante o reconhecimento da validade de exclusão da parte, foi reconhecido também que a fundamentação utilizada não correspondia aos fatos, de modo que a empresa restou condenada em danos morais em razão de utilizar motivos irreais para fundamentar sua decisão. É um precedente jurídico muito interessante, pois acolhe a civilidade e o respeito nas relações privadas, atribuindo responsabilidade quanto alegações em desacordo com a realidade.

À demissão relatada acima e seu desfecho, não caberia uma ação criminal ou civil, já que a empresa apresentou denúncia que não pode provar?

É questionável a solução da via criminal, pois se trata de pessoa jurídica, e em regra as pessoas jurídicas possuem restrições para figurarem em ações criminais, sendo exceção os casos de crimes ambientais e tributários. Ademais, a intervenção tinha o objetivo mais simples, que era pleitear o restabelecimento do perfil na plataforma e fixação de danos morais.

Sempre ressalto que a via criminal não pode ser alternativa para solução de conflitos cíveis, ademais, o caso foi tratado em sede de diálogos privados, não havendo exposição pública da parte, o que diminuiria o enquadramento de suposta imputação de calúnia ou injúria. Outra possibilidade seria o enquadramento em denunciação caluniosa, mas essa imputação também estaria prejudicada, pois, não houve apresentação do caso às autoridades policiais, sendo o caso de concentração exclusiva apenas na esfera cível.   

Em sua opinião, ao analisar este caso específico, os danos morais e psíquicos não são mais duráveis do que os financeiros? Não caberia buscar saídas de lei, para proteger os trabalhadores de aplicativos?

A pergunta é boa, mas merece esclarecimentos. Toda e qualquer alegação de dano precisa ser provada, não se admitindo a presunção de veracidade. No caso de dano moral e existencial essa presunção é relativizada. Há riscos nessa relativização, mas o judiciário tem agido com cautela e precisão nessas decisões, sobretudo porque as vias recursais acabam melhorando a decisão anterior.

A forma como o ordenamento jurídico lida com o problema já é amplamente satisfatória. O Código Civil possui previsão de reparação de ilícitos cíveis de forma ampla, seja de simples dano material, dano moral, lucros cessantes e até a fixação de pensão mensal vitalícia para casos que envolvem incapacidade ou morte da parte, no entanto, o critério de tal fixação é a extensão do dano ocasionada, ou seja, nosso ordenamento jurídico é absolutamente satisfatório para tratar e resolver os problemas advindos da atividade.

Sua pergunta é boa, pois trata da duração do dano psíquico: o fundamental nesse caso é a produção de provas. Se as partes conseguirem demonstrar e provar que tal decisão gerou tal dano, nosso ordenamento está apto a indicar a solução adequada, expandindo a obrigação indenizatória conforme a extensão do dano, portanto, não vejo necessidade de lei específica para tratar do tema.

Este século 21 é a era dos aplicativos. Se por um lado eles facilitam nossa vida, por outro, a massa de trabalhadores informais cresce no Brasil. Como o senhor enxerga esta realidade?

É lugar comum que tais serviços de aplicativo (alimentação/viagens) constituíram uma revolução positiva no atendimento das necessidades humanas. Devem-se afastar narrativas que demonizam tais serviços, sendo tais narrativas fruto do atraso ou da incompreensão. O foco deve ser a regulamentação do serviço, tal como diversos países estão tentando realizar.

Essa semana o noticiário trouxe informação que a União está com minuta de projeto de lei destinada a regulamentar os direitos dos trabalhadores do setor de aplicativo de viagens. A proposta é necessária, pois obriga a contribuição previdenciária, a existência de seguro de vida em patamar equilibrado, regulamenta o número de horas de trabalho por dia, e inclui ainda necessidade de criação de espaço sanitário e de alimentação aos motoristas, ou seja, as autoridades brasileiras estão se mobilizando para melhorar o serviço e garantir direitos mínimos aos trabalhadores, de modo que devemos acompanhar com entusiasmo tal tentativa.

Recentemente, notícias deram conta de que entregadores de aplicativos têm se recusado a entrar em prédios e condomínios fechados, pois já aconteceu de serem roubados e maltratados. Seria o caso de uma legislação de garantias de segurança no trabalho ou já temos leis ou jurisprudência sobre o tema?

Você deve estar se referindo ao episódio ocorrido recentemente no RJ, em que importante apresentador esportivo exigiu a presença do entregador em sua porta no hotel e em seguida houve um entrevero entre ambos. O caso é curioso, mas pedagógico dos conflitos que podem ocorrer nesse tipo de trabalho.

Não tenho condições técnicas de opinar sobre a melhor dinâmica na realização dos serviços, acredito que somente as entidades representativas de cada setor poderiam definir essa dinâmica, deliberando pela melhor prestação de serviço, e ao mesmo tempo, garantindo proteção aos trabalhadores. 

O Governo Federal, através do Ministro do Trabalho, vem desde o início do ano defendendo a regulamentação do trabalho com aplicativos. Como o senhor vê esta proposta?

Como expresso na questão 4, devemos acompanhar com entusiasmo tal proposta, exigindo que o congresso aprecie a regulamentação em tempo hábil, pois ela é importante para o mercado e para os trabalhadores, uma vez que dará segurança jurídica para ambos.

Provável que haja chantagem de algumas empresas, com declaração de interrupção do serviço, ou encarecimento do preço, no entanto, devemos encarar tais possibilidades com equilíbrio e maturidade, com foco na saída positiva. Já vivenciamos esse tipo de chantagem anteriormente e o país está preparado para cumprir seu papel de regulamentador das relações sociais.

Algumas semanas atrás, a Uber, ao tomar conhecimento dos propósitos do governo, teria dito que, se houver regulamentação, abandona o País. Qual sua posição sobre esta fala?

Como expresso na questão anterior, esse tipo de chantagem não é novidade. Assim aconteceu quando da regulamentação da CLT, de direitos como 13º, auxílio maternidade, agora com os pisos nacionais da enfermagem e educação, quase sempre um polo da relação alega inviabilidade da regulamentação, ensaiando uma ruptura com o sistema e o encerramento das atividades.

As autoridades públicas e os técnicos que compõem os governos são vacinados contra esse tipo de chantagem. Alegações de dificuldades na aplicação da regulamentação deverão ser comprovadas, sendo passível até mesmo a elevação da taxa do serviço como forma de cumprimento das leis protetivas, o que não se pode admitir é o trabalho clandestino de milhares de trabalhadores, que vivem à margem dos direitos trabalhistas, previdenciários, securitários e indenizatórios.

No final, sempre, o bom senso prevalece. Todos os Estados soberanos têm obrigação com seu povo e com os princípios da dignidade humana, de modo que a regulamentação do setor é inevitável e irá ocorrer, mais dias, ou menos dias.

Sem regulamentação, como os trabalhadores de aplicativos podem defender direitos e proteção, de acordo com a legislação?

Sempre há margem para pleitos judiciais. Viver é bom e inventamos o direito para melhorar essa experiência, mas a judicialização da vida não pode ser protagonista dessa experiência. Há milhares de ações judiciais pleiteando-se reconhecimento de vínculo trabalhista com essas empresas, pelo que se tem informação, todas, com exceção de uma, foram julgadas improcedentes.

O TRT da 2ª Região deu procedência para o pedido do Ministério Público do Trabalho, ação sob nº 1001379-33.2021.5.02.0004, dando prazo de 6 meses para assinatura da CTPS de todos os motoristas de determinado aplicativo, além da aplicação de dano moral na ordem de 1 bilhão. Evidente que a citada empresa promoverá recurso em face da decisão de primeira instância.

Penso que a referida decisão deve servir como inspiração para o debate nacional sobre a necessidade de regulamentação. Não acredito que tal decisão prospere em outras instâncias, nem seria pedagógico que prosperasse, pois estaríamos substituindo a função do congresso e do executivo, em favor de uma decisão peculiar. Há princípios de direito que não podem ser abandonados em favor de decisões que consideramos justa.

A CLT exige para o reconhecimento do vínculo trabalhista a existência de quatro requisitos: pessoalidade, onerosidade, habitualidade e subordinação. Para o bem ou para o mal esses são os requisitos legais, e seria forçar a interpretação alegar que todos os motoristas atendem rigorosamente esses requisitos, pois não existe subordinação direta, nem exigência de habitualidade. Podemos construir uma norma legal que diga que o vínculo virtual constitui subordinação, no entanto, a questão é controvertida, de modo que, somente uma nova legislação poderá dar conta de enquadrar esses trabalhadores em novo tipo de vínculo trabalhista.  

O senhor defende um Estado de Bem-Estar Social, onde todos tenham direitos adquiridos ou a lei da meritocracia é mais adequada para o Brasil?

O princípio da meritocracia é uma disposição de direito natural. O mérito existe e é reconhecido como tal, com manifestações em todas as áreas do conhecer e fazer humano, no esporte, nas artes, na ciência, e na filosofia. Não há oposição entre Estado protetivo e o conceito de mérito. Digo isso para preservar e valorizar o conceito, ante narrativas que querem abolir sua existência. De outro lado, um Estado acolhedor e garantidor de direitos fundamentais para toda pessoa que nele nasça ou viva deve ser nossa meta, nosso percurso rumo à moralidade plena.

Penso que toda a ação de todo homem/mulher moderno deve ser no sentido da afirmação do projeto de realização do indivíduo, sem grandes utopias ou sistemas abstratos, alicerçado na existência de Estados nacionais fortes e seguros. Esse homem/mulher e esse Estado moderno devem manifestar o seguinte princípio de cuidado: existindo a pessoa, essa deve ter direito à realização de todas suas potencialidades, e isso em nada abole a existência do mérito. Veja que se trata de uma afirmação simples, mas humanitária. Essa é nossa tarefa. Com esse Estado, o direito apenas agirá para corrigir pequenos controversos, nunca sendo protagonista dessa experiência humana.

O Judiciário, na ausência de uma Legislação, deve continuar a mediar conflitos, porém, considerar um estado de Direito Democrático?

Você traz uma questão importante de filosofia do direito e de direito constitucional. Pode haver decisões judiciais sem origem no processo legislativo? Elas seriam legítimas? O justo e o legal pode advir da autonomia intelectual de um servidor público, no caso, um juiz, desembargador ou Ministro? A questão é problemática, mas deve ser respondida negativamente.

Nós, ocidentais modernos, somos tributários do paradigma civilizatório construído pela revolução francesa e seu rígido princípio da separação de poderes, anteriormente elaborado, mas com forma política dada e consolidada pela revolução francesa. Uma das conquistas dessa modernidade foi a desconfiança quanto aos poderes unilaterais de indivíduos, por isso a tipificação legal é nosso fundamento. A lei, fruto do processo legislativo, é nossa única garantia de civilidade. Nesse sentido, é de arrepiar as construções analógicas que o STF tem realizado na área criminal nos últimos anos, atribuindo analogia onde somente a lei poderia fazer.

Sob a fachada da luz que ilumina os bárbaros, a corte constitucional tem imprimido sua vontade contra o ordenamento, seja na área dos costumes, do direito eleitoral, do direito criminal, e até mesmo em matérias cíveis. Importante: em matéria de direito eleitoral o STF e o TSE têm imposto um verdadeiro cerco aos partidos políticos e seus membros, com aplicação de multas e sanções que inviabilizam seu funcionamento e autonomia, comprometendo a expressão democrática de nossas instituições da sociedade civil, que representam todo o povo.

Portanto, a resposta à sua pergunta deve ser negativa, não sendo atribuição do judiciário intervir na mediação de conflitos, devendo se limitar a decidir nos limites do enquadramento do caso concreto ao tipo legal, fazendo isso, dará sua contribuição ao melhoramento e organização da sociedade.

Muito Obrigado Dr. Cláudio.

A Todas e Todos um belo final de Semana.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.

error: Conteúdo protegido por direitos autorais.