Este é o terceiro artigo da série “O Ministério Público e a Liberdade de Expressão”. Clique aqui para ler os dois primeiros textos.
Por Saad Mazloum
Questão se que coloca, com importantes reflexos, diz respeito à norma insculpida no artigo 128, §5º, inciso II, letra “e”, da Constituição Federal, que veda aos membros do Ministério Público o exercício de atividade político-partidária. Seguem o modelo constitucional a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, em seu artigo 44, inciso V, e o estatuto do Ministério Público da União, no artigo 237, inciso V.
Em artigo publicado na revista virtual Observatório da Imprensa, Hugo Nigro Mazzilli assinalou o alcance e o significado da expressão atividade político-partidária: “Ao juiz e ao promotor, como cidadãos, não se proíbe tenham opinião político-partidária. Mas é incompatível que se filiem a partidos políticos, pertençam a órgãos de direção partidária, exerçam qualquer ação direta em favor de um partido, ou mesmo participem de suas campanhas. Devem ainda abster-se de fundar partido político ou de praticar qualquer ato de propaganda ou de adesão pública a programas de qualquer corrente ou partido político, bem como abster-se de promover ou participar de desfiles, passeatas, comícios e reuniões de partidos políticos, ou de exercer ou até mesmo concorrer aos cargos eletivos correspondentes, pois para tanto não se dispensa a militância político-partidária”.
O Ministério Público é uma instituição constitucional autônoma, independente e sem vinculação político-partidária, cumprindo-lhe observar e fazer cumprir o disposto no artigo 37, “caput”, da Constituição Federal, que consagra o princípio da impessoalidade e da moralidade para todos os agentes públicos.
Em sua atividade funcional, o membro do Ministério Público deve manter conduta isenta, insuspeita e impessoal. O exercício de atividade político-partidária, que “não se restringe apenas à prática de atos de filiação partidária”, compreendendo também a manifestação pública de apoio e vinculação a determinado candidato ou partido político, sem dúvida causa reflexos em sua atividade funcional, comprometendo sua independência e reputação. Suscita dúvidas e suspeitas quanto a justeza de sua atuação nos feitos que oficia, especialmente naqueles que guardam relação com a administração pública. Mais que isso, abala a confiança da coletividade na integridade do sistema da justiça.
Para compreender bem o contexto, basta pensar na hipotética situação de um promotor ou procurador com atribuições na área de improbidade administrativa, que exerça ou tenha exercido atividade político-partidária, manifestando público apoio (ou rejeição) a determinado partido político. O questionamento que daí decorre é bastante lógico. Que credibilidade terá ele para investigar um deputado, um prefeito ou vereador desse mesmo partido, representado por ato de improbidade? Não é difícil imaginar as suspeitas que recairão sobre a legitimidade de sua atuação, inclusive de seus próprios colegas.
Na mesma situação é possível imaginar um integrante de órgão da administração superior da instituição. E citamos como exemplo o Conselho Superior do Ministério Público, incumbido de apreciar as promoções de arquivamento e os recursos interpostos por agentes públicos – muitas vezes ocupante de cargos eletivos – investigados em inquéritos civis.
Em síntese, cuidando-se a atividade político-partidária de comportamento assumido sponte própria pelo membro do Ministério Público, revela-se clara a violação aos princípios constitucionais da administração pública, elencados no artigo 37 da Constituição Federal, notadamente da impessoalidade e da moralidade, e certamente também o da legalidade, do qual decorrem os princípios da imparcialidade e da independência funcional.
Todavia, é importante ressaltar que a norma constitucional que veda aos membros do Ministério Público o exercício de atividade político-partidária possui caráter restritivo, com consequentes efeitos sobre a liberdade de manifestação do pensamento. Por essa razão, não se admite o alargamento de seu significado, sobretudo porque a liberdade de expressão é a regra, como regra também é o exercício da atividade política, ambos valores inerentes ao regime democrático.
De qualquer modo, é preciso ter em mente que a simples revelação de preferência política, conquanto não se trate do vedado exercício de atividade político-partidária, quando manifestada publicamente pelo membro do Ministério Público – em sua página pessoal de rede social, por exemplo -, também pode causar embaraços e, dependendo do cargo que ocupe ou das funções que exerça, pode comprometer também a credibilidade de sua atuação.
Nestes novos tempos, em que tendências ideológicas tanto se exacerbaram, e muitos se descobriram de repente como alinhados a política “de direita” ou “de esquerda”, revelações e manifestações públicas de identificação ou empatia a uma ou outra corrente político-ideológica fatalmente provocarão os mesmos e deletérios efeitos já mencionados.
Como alertamos em linhas anteriores, a vedação de atividade político-partidária, e bem assim o recato e discrição quanto às preferências políticas, postam-se também em defesa do próprio membro do Ministério Público.
Porém, não se admite que sob esse ou qualquer outro pretexto sejam editadas normas pelos órgãos da administração superior do Ministério Público ou pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) que minudenciem o que, quais e como são permitidas ou vedadas manifestações dos membros do Ministério Público. Pois não se pode ignorar as infinitas possibilidades de manifestação do membro do Ministério Público, em situações e contextos diversos, e que não haverão de configurar atividade político-partidária ou violação do dever de manter conduta ilibada e de guardar decoro pessoal.
Lembrando o que escrevemos anteriormente, qualquer disposição referente ao tema liberdade de expressão demanda reflexão e cautela, pois cuida-se de direito fundamental sob a regência de princípio maior, que é a dignidade da pessoa humana.
Em suma, em se tratando de tema relacionado ao direito fundamental de livre expressão do pensamento, são válidas as recomendações (ou enunciados que possam assim ser compreendidos), emanados de órgãos da administração superior do Ministério Público ou do Conselho Nacional do Ministério Público – tendo em conta sempre que obrigações e vedações decorrem unicamente da lei e da Constituição Federal -, com vistas a orientar o membro do Ministério Público a exercer suas funções com ética e eficiência, mantidas sua reputação, imparcialidade e credibilidade, de modo a evitar danos e prejuízos para o serviço público, para terceiros e para a coletividade.
No próximo artigo vamos falar sobre liberdade de expressão, direito à informação e o papel do Ministério Público.
Saad Mazloum é Procurador de Justiça e membro eleito do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo.
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