Injúria racial e racismo: a equiparação e seus desdobramentos

O Supremo Tribunal Federal (STF), em entendimento nesta quinta-feira (28), equiparou a injúria racial ao crime de racismo e, com isso, a tornou imprescritível. O colegiado negou Habeas Corpus em que a defesa de uma mulher condenada por ter ofendido uma trabalhadora com termos racistas pedia a declaração da prescrição da condenação, porque tinha mais de 70 anos quando a sentença foi proferida.

Para esclarecer a decisão recente e os eventuais desdobramentos, o DJ conversou com o advogado Thiago Treinta, também professor de Direito no Isca Faculdades, sobre, por exemplo, os tipos de condutas que podem ser enquadradas no crime de racismo e no de injúria racial, bem como os impactos dessa decisão. Confira a entrevista.

DJ – O racismo é considerado um crime inafiançável e imprescritível pela Constituição, mas o legislador não o conceituou em lei. Qual a dificuldade prática disso na análise das autoridades para a identificação de uma conduta racista? Quais tipos de condutas podem ser enquadradas no crime de racismo e no de injúria racial ou qualificada pelo preconceito e as punições previstas na legislação?

Treinta – A Constituição Federal estabeleceu, em seu artigo 3º, inciso IV, como objetivo fundamental da República a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O termo “racismo” foi empregado em apenas duas passagens, sendo a primeira no artigo 4º, inciso VIII, que, ao tratar das relações entre a República brasileira e as demais nações, estabeleceu como princípio o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”, e, a segunda, no importantíssimo artigo 5º, que versa sobre os direitos e garantias fundamentais, que, em seu “caput”, determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, inclusive no caso de estrangeiros, complementando essa disposição com o inciso XLII, ao dizer que a “prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

O inciso XLII do artigo 5º é um mandado constitucional de criminalização explícito, ou seja, a nossa Constituição, seguindo o modelo das constituições europeias, estabeleceu hipóteses de intervenção obrigatória do legislador penal, casos em que o legislador ordinário deixa de ter a faculdade de legislar, ao seu bel prazer, e passa a ter um dever, uma obrigação, de tratar do assunto protegendo determinados bens e interesses da sociedade de forma adequada e integral.

Tais bens e interesses podem ser explícitos, ou seja, elencados claramente pela Constituição, tal como o racismo (art. 5º, inc., XLII), a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os crimes hediondos (art. 5º, inc. XLII), a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático (art. 5º, inc. XLIV), os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos equivalentes à emenda à constituição) humanos a retenção dolosa de salário dos trabalhadores (art. 7º, inc. X), o abuso, violência e exploração sexual da criança e do adolescente (art. 227, § 4º) e as condutas lesivas ao meio ambiente (art. 225), ou tácitos, como, por exemplo, o combate à corrupção eleitoral.

O legislador, para cumprir este mandado constitucional de criminalização, editou a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes de preconceito de raça ou de cor, com 13 (treze) tipos penais, versando sobre diferentes condutas, conforme os artigos 3º a 14 e 20.

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional

[…]

Art. 3º Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos. Pena: reclusão de dois a cinco anos. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional.

Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada. Pena: reclusão de dois a cinco anos. § 1º Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica: I – deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores; II – impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional; III – proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. § 2º Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.

Art. 5º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador. Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 6º Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau. Pena: reclusão de três a cinco anos. Parágrafo único. Se o crime for praticado contra menor de dezoito anos a pena é agravada de 1/3 (um terço).

Art. 7º Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar. Pena: reclusão de três a cinco anos.

Art. 8º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público. Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 9º Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público. Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 10. Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades. Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 11. Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos: Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 12. Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido. Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 13. Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas. Pena: reclusão de dois a quatro anos.

Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social. Pena: reclusão de dois a quatro anos.

[…]

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo; II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; III – a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. § 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.

Do mesmo modo, adicionou o § 3º ao tipo penal de injúria (art. 140, CP) por meio da Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, surgindo a figura da injúria racial ou qualificada pelo preconceito, que, tecnicamente, é uma qualificadora do crime de injúria.

Injúria

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

[…]

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de um a três anos e multa.

Todavia, em nenhum dos diplomas legislativos, conceituou “raça”, “cor”, “etnia”, “religião” ou “procedência nacional”, situação, que, aparentemente, criou um conflito entre o tipo penal do artigo 20 da Lei nº 7.716/1989 e o do artigo 140, qualificado pelo § 3º, do Código Penal, a ser solucionado pelos intérpretes da lei.

A doutrina e a jurisprudência, observando o objetivo de cada uma das leis e a tipificação elaborada pelo legislador, diferenciou o bem jurídico tutelado e, portanto, o alcance de cada um dos tipos penais.

O crime do art. 140, § 3º, CP (injúria racial ou qualificada pelo preconceito), por se tratar de uma qualificadora do crime de injúria que, em natureza, é contra a honra do indivíduo, estando, inclusive, no Capítulo V do Título I da Parta Especial do Código Penal (“Dos crimes contra a honra”), está restrito aos casos em que a ofensa proferida tenha por objetivo ofender a dignidade ou o decoro de alguém, tanto que o bem jurídico penalmente tutelado é a honra e a imagem da pessoa que sofre com a conduta criminosa. Trata-se, por esse motivo, de crime de menor potencial ofensivo e de ação penal privada, exigindo o oferecimento de queixa-crime pelo ofendido.

Por outro lado, o crime previsto no art. 20 da Lei nº 7.716/1989 exige conduta que incite a discriminação ou o preconceito contra um determinado grupo ou coletividade unidos pela raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, envolvendo, em regra, condutas mais amplas, discriminando-se a totalidade do grupo ou coletividade.

Nesse caso, não se exige qualquer conduta dos ofendidos. Ao contrário, a ciência da conduta pelas autoridades demanda a adoção de providências para investigar e, se for o caso, processar e condenar os responsáveis, tratando-se de hipótese de ação penal pública incondicionada, a cargo do órgão de execução do Ministério Público.

Como exemplo prático de diferenciação entre ambos, o caso famoso de torcedores de um time de futebol de Porto Alegre que insultaram um goleiro do time adversário, de raça negra, chamando-o de “macaco” durante o jogo, conduta que, ofendendo apenas a honra deste indivíduo, foi tratada como injúria racial ou qualificada pelo preconceito (art. 140, § 3º, CP), e, de outro flanco, o caso de um jovem de Brasília que se autodenominava skinhead e fazia apologia ao racismo contra judeus, negros e nordestinos em página da internet, cuja conduta foi, corretamente, tratada como racismo (art. 20 da Lei nº 7.716/1989).

DJ – Com a equiparação da injúria racial ou qualificada pelo preconceito ao crime de racismo feita pelo STF, é possível afirmar que, em caso de flagrante de prática de injúria racial ou qualificada pelo preconceito, não caberá fiança?

Treinta – A diferenciação dos crimes traz consequências enormes, uma vez que o crime de racismo não admite, por óbice constitucional, fiança; e, também por previsão constitucional, é imprescritível, escapando à regra dos artigos 109 a 119 CP.

Note-se, por essencial, que a prescrição é a regra geral, existindo apenas dois crimes imprescritíveis no Brasil: o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático (art. 5º, XLIV, CF).

Por outro lado, o crime de injúria racial ou qualificada pelo preconceito, até então, admitia a fiança e prescrevia, com base na pena máxima em abstrato, em 8 (oito) anos, conforme art. 109, inc. IV, CP.

Contudo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus 154.248/DF, rel. Min. Edson Fachin, em sessão de 28 de outubro de 2021, denegou a ordem para reconhecer a extinção da punibilidade do paciente pela prescrição.

O caso concreto versava sobre a conduta de L.M.S., pessoa com 80 anos, condenada em 2013 a um ano de reclusão e 10 dias-multa pelo juízo da 1ª Vara Criminal de Brasília/DF por ter ofendido uma frentista de posto de combustíveis ao chamá-la de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida”. Foi oferecida denúncia por injúria racial ou qualificada pelo preconceito (art. 140, § 3º, CP) e, em sede recursal, entendeu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que o crime integra uma categoria do crime de racismo, sendo, pois, imprescritível.

Os Ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Roberto Barroso e Alexandre de Moraes acompanharam o relator, Min. Edson Fachin, e acolheram a decisão do STJ, sob os argumentos, em resumo, (a) de ser a Constituição Federal explícita ao declarar que o racismo é um crime inafiançável, não fazendo distinção alguma sobre as diversas condutas que constituem essa prática, especialmente pelo fato de, ao longo do tempo, tais condutas se diversificarem na sociedade; (b) da intenção clara da ofensora de inferiorizar a ofendida por pertencer à população negra; (c) da necessidade de combater o racismo estrutural existente no brasil; (d) da ofensa não atingir apenas a vítima, mas também a sua dignidade como ser humano; (e) por ser o Brasil signatário de tratados e convenções internacionais em que se compromete a combater o racismo; e, (d) da necessidade de assegurar às pessoas negras proteção através não só da previsão abstrata do crime, mas também da efetiva punição dos criminosos. Ausente o Min. Gilmar Mendes.

Com esta decisão, o crime de injúria racial ou qualificada pelo preconceito, acertadamente, será tratado, para todos os fins, sob a égide do art. 5º, inc. XLII, CF, sendo proibido o arbitramento de fiança, seja pela autoridade policial, seja pelo magistrado (art. 322 CPP), e, ainda, não se aplicando as regras de prescrição previstas nos artigos 109 a 119 CP.

DJ – O ministro Nunes Marques foi voto vencido no julgamento do STF, com a tese de que racismo e injúria racial ou qualificada pelo preconceito são condutas diferentes e que a imprescritibilidade da injúria racial ou qualificada pelo preconceito só poderia ser implementada pelo Legislativo. O que pensa a respeito dessa tese?

Treinta – Com todo respeito à opinião do Min. Nunes Marques, particularmente, comungo da mesma opinião dos demais Ministros, uma vez que, em momento algum, a Lei nº 7.716/1989 fala em prescrição ou inafiançabilidade. Não precisou fazê-lo, pois, a previsão decorre da própria Constituição.

Os tipos penais apenas se encontram em diplomas legislativos diferentes – um, no Código Penal, outros na lei especial – e nada impediria, por exemplo, que fosse ao contrário.

Portanto, sob esta ótica, não existe diferença alguma entre o racismo e a injúria racial ou qualificada pelo preconceito, não sendo necessária qualquer intervenção legislativa.

Ao contrário, o objetivo do texto constitucional é impedir a discriminação de pessoas e a injúria, quando qualificada pelo preconceito, também atrai para a norma o mesmo objetivo.

Foi exatamente por este motivo que o legislador qualificou a injúria, inclusive com a mesma pena do racismo do art. 20, para afastar qualquer dúvida sobre o alcance da norma, reiterando que, seja a discriminação voltada a um grupo ou a uma coletividade de pessoas, seja a uma pessoa específica, a sanção deve ser idêntica.

Nesse sentido, ao revés, o entendimento anteriormente vigente vulnerava a proteção desejada pela Constituição ao tratar com consequências mais leves conduta que, na prática, produz o mesmo resultado que o crime de racismo do art. 20, mudando, entre ambos, apenas a vítima atingida.

DJ – O Judiciário, de forma geral, vem consolidando a jurisprudência no sentido de conferir maior amplitude protetiva às vítimas de racismo. Como vê esse posicionamento?

Treinta – Sim. O Poder Judiciário vem consolidando a jurisprudência no sentido de reconhecer a necessidade de respeitar e proteger os direitos e garantias individuais do cidadão, principalmente na vertente de efetividade na aplicação da norma, afinal, a grande reclamação pública em relação ao funcionamento do Poder Judiciário é a falta de efetividade da lei penal, especialmente para impedir a reiteração do crime pelo agente ou por terceiros.

Além disso, o aumento do acesso à informação rápida e gratuita pela internet permite aos membros da sociedade como um todo perceberem que tais casos continuam a existir e ocorrem o tempo todo, inclusive ao nosso lado, sendo necessário o posicionamento de todos, tanto na condição de intérpretes da lei como de cidadãos,  contra condutas que, em pleno século XXI, busquem marginalizar, discriminar, preterir ou instituir qualquer tipo de preconceito ou inferiorização de qualquer pessoa, grupo ou coletividade por qualquer que seja o motivo.

Thiago Treinta é advogado, professor do curso de Direito do Isca Faculdades

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