Governo federal não pode requisitar vacina do governo estadual

Por Edmar Silva

O Brasil está na iminência de completar um ano de enfrentamento à pandemia do coronavírus e ainda se encontra em situação delicada na questão da saúde pública, principalmente em razão da recente falta de oxigênio em Manaus, que provocou verdadeiro caos nos hospitais.

            Nesse cenário, a vacina, que já é uma realidade, apresenta-se como algo urgente, imprescindível necessário e eficaz. No entanto, ela parece ter causado mais problemas entre as autoridades, gerando disputa sobre quem deve iniciar a vacinação e quem pode ter a propriedade e posse da vacina.

            Chegou-se ao ponto de ser cogitada a possibilidade de a União requisitar vacina adquirida por governo estadual. Juridicamente, porém, não há possibilidade dessa requisição se concretizar.

            O sistema de saúde no Brasil é único e deve ser garantido a todas as pessoas pelo poder público nos seus diferentes níveis, desde o municipal até o federal, nos termos do art. 196 da Constituição Federal. Além disso, a Constituição também prevê que a prestação dos serviços relacionados à saúde deve ocorrer de forma regionalizada, hierarquizada e, principalmente, descentralizada (art. 198).

            Isso significa que a saúde é direito de todos e dever do poder público, que precisa dividir essa responsabilidade entre os três níveis de governo, respeitando-se, sempre, a autonomia de cada um dos entes federados (municípios, estados, Distrito Federal e União).

            Vale ressaltar que a descentralização consiste na transferência de responsabilidades sobre os serviços de saúde da União para os estados e destes para os municípios, a fim de alcançar uma maior eficiência e qualidade na prestação dos serviços. Ocorre, assim, a distribuição da gestão e das políticas de saúde no país.

            Todavia, essa descentralização deve ser feita de forma organizada e integrada entre a União, estados e municípios para que seja mantido o devido respeito à autonomia de cada um e consequentemente do pacto federativo, segundo o qual todos os entes federados são autônomos, não podendo haver subordinação entre eles.

            Portanto, não há que se falar em hierarquia entre a União, estados, Distrito Federal e municípios. Um não exerce qualquer tipo de poder sobre o outro, devendo todos coexistirem.

            Diante disso, já é possível visualizar um impedimento de ordem constitucional para que a União exerça poder sobre governo estadual com o objetivo de tomar para si a vacina adquirida por este último.

            Mas não é só.

            A requisição administrativa está prevista no artigo 5º, inciso XXV, da Constituição Federal e só pode recair sobre bens dos particulares, pois o mencionado artigo está assim redigido: no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.

            Como se nota, requisição significa o uso compulsório (forçado) de uma propriedade pelo poder público e somente pode atingir os bens dos particulares e não os bens dos órgãos públicos, como é o caso de vacina já adquirida por governo estadual.

            Inclusive, por essa e outras razões que o Supremo Tribunal Federal (STF), já em período de pandemia, decidiu pela impossibilidade de o governo federal requisitar ventiladores pulmonares adquiridos pelo estado do Maranhão (Ação Cível Originária nº 3.385), bem como impediu a União de requisitar agulhas e seringas já contratadas pelo governo de São Paulo (Ação Cível Originária nº 3.463).

            É importante lembrar que o Tribunal já possuía precedente impedindo a requisição de bem público desde o ano de 2.005, ainda na época do Ministro Joaquim Barbosa (Mandado de Segurança nº 25.295/DF), não se tratando, portanto, de posição jurídica assumida recentemente.

            A exceção à regra de que não se pode requisitar bem público fica por conta de eventual decreto de estado de defesa ou estado de sítio, hipóteses em que a própria Constituição Federal permite a requisição de qualquer bem, privado ou público, dentre outras medidas mais drásticas, para manter a paz e a ordem em situações caóticas, de instabilidade institucional e até de guerra (artigos 136 e 137). Mas não é esse o cenário do país no momento.

            Desse modo, atualmente, caso a União requisite vacina de algum governo estadual, a tendência é o STF ser acionado, seguir os precedentes já mencionados e impedir tal ato, com amplo amparo e fundamento na Constituição Federal. 



Edmar Silva é analista jurídico do Ministério Público de São Paulo. Formado em Direito, aprovado no exame da OAB-SP e pós-graduando em Direito Público.

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