Promotor de Defesa da Saúde Pública em Limeira, Rafael Augusto Pressuto detalhou, em artigo ao DJ, sobre as competências dos governos federal, estadual e municípios quando o assunto é proteção e defesa da saúde. Confira:
A repartição constitucional de competências entre União, Estados e Municípios para a proteção e defesa da saúde
Por Rafael Augusto Pressuto
Desde o início da pandemia, muito tem se discutido sobre o que cada ente federativo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) pode e não pode fazer quanto às medidas de enfrentamento ao coronavírus.
O ponto de partida para análise da questão é o art. 24, XII, da Constituição Federal, segundo o qual “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre” a “proteção e defesa da saúde”. Com relação aos Municípios, prescreve o art. 30 da Constituição Federal que compete “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”.
Em outras palavras, a União, os Estados e o Distrito Federal possuem competência concorrente para legislar sobre a proteção e defesa da saúde, enquanto os Municípios apenas detêm competência para suplementar, no que couber, as normas federais e estaduais.
Assim, fica fácil compreender o motivo pelo qual os Municípios não podem relaxar as medidas restritivas estabelecidas pelo Estado para o enfrentamento da pandemia.
Ora, suplementar significa suprir o que falta ou preencher uma lacuna. Logo, ao permitir o funcionamento de atividades proibidas pelo Estado, não estaria o Município suplementando, mas contrariando a legislação estadual, o que não é possível.
Isso tem uma razão de ser. As ações e os serviços do Sistema Único de Saúde são organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade. Ademais, no caso da pandemia, seus efeitos transcendem os limites territoriais dos Municípios, não se tratando, portanto, de assunto meramente local.
E como funciona a competência concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal?
Importante considerar, para a exata compreensão do tema, que a expressão “concorrente”, utilizada pela Constituição Federal, não significa fazer concorrência ou competição, mas caminhar de forma conjunta, unir-se para uma ação ou um fim comum.
Assim, compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, de forma integrada e cooperativa, para alcançar o objetivo comum de preservar a vida e a saúde.
Neste modelo, incumbe à União estabelecer normas gerais, veiculando diretrizes para a defesa da saúde, permitindo que Estados e Municípios atuem de forma harmônica.
Deve prevalecer, assim, o princípio da predominância do interesse, segundo o qual compete à União regular assuntos de predominante interesse geral e aos Estados questões de predominante interesse regional, enquanto aos Municípios incumbe, de forma suplementar, normatizar assuntos de interesse local.
O problema surge quando não há sintonia entre os governantes, que, ao invés de caminhar conjuntamente, respeitando o princípio da predominância do interesse e os limites constitucionais, deflagram uma verdadeira competição, motivada por questões políticas e ideológicas, como temos acompanhado nas questões relativas à pandemia.
Como consequência, surgem atos normativos conflitantes, editados por entes federativos igualmente competentes, gerando dúvidas e incertezas. É necessário, então, definir critérios para estabelecer qual norma deve prevalecer.
Neste ponto, além da questão relativa à predominância do interesse, deve-se considerar que, nos termos da Constituição Federal, a competência legislativa é para a “proteção e defesa da saúde”. Dessa forma, parece intuitivo que, havendo conflito, deve prevalecer a norma mais protetiva ao direito tutelado, ou seja, a saúde pública.
Ao contrário do que muitos imaginam, não há hierarquia entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Há repartição constitucional de competências entre os entes federativos, que são autônomos e independentes, desde que respeitem os limites estabelecidos pela Constituição Federal.
Dessa forma, não pode a União atuar de forma isolada, conforme a convicção de seus governantes, ignorando a competência concorrente dos Estados.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, chamado a solucionar conflitos relacionados a medidas de enfrentamento à pandemia, reconheceu a validade de decretos estaduais, ainda que conflitantes com o decreto federal relacionado ao tema. Ao julgar a ADI 6341, por exemplo, o STF entendeu que a possibilidade de o chefe do Executivo Federal definir, por meio de decreto, a essencialidade de atividades e de serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afronta o princípio da separação dos poderes.
Isso, contudo, não significa que a União está impedida de atuar, como se tem propalado. Ao contrário, como consignado, a competência da União é a mesma dos Estados, mas deve ser utilizada, em assuntos de interesse geral, para a “proteção e defesa da saúde”, sem invadir a esfera de competência dos demais entes federativos.
Nesse aspecto, é certo que proteger e defender a saúde, no atual momento, significa, no mínimo, reconhecer a gravidade da pandemia, informar a população acerca da necessidade de alteração de seus hábitos e estabelecer medidas para minorar as chances de contágio, até que a medicina encontre tratamento adequado.
Enfim, pode-se concluir que todos os entes federativos são competentes para a edição de atos normativos relacionados à proteção e defesa da saúde, desde que respeitem os parâmetros constitucionais.
É necessário, portanto, compreender o funcionamento do sistema constitucional de repartição de competências, para que as medidas necessárias para a preservação da saúde, especialmente em tempos de pandemia, sejam estabelecidas de acordo com o regramento técnico-jurídico, desapegadas de interesses político-ideológicos.
Rafael Augusto Pressuto é promotor de Justiça em Limeira, da área de Defesa da Saúde Pública.
Deixe uma resposta