Em sentença, juiz pede desculpas a médico ofendido por mulher que exigia o “remédio do presidente”

A sociedade precisaria se juntar e pedir desculpas em nome da ré, a começar por este julgador: “RECEBA MINHAS SINCERAS DESCULPAS!”. Este pedido está em sentença assinada no último dia 13 pelo juiz Guilherme de Macedo Soares, da comarca de Santos.

A ré é uma mulher, advogada. A vítima é um médico de um Pronto Socorro do na cidade do litoral paulista.

No relato da ação de indenização por danos morais, o médico conta que em maio de 2020 atendeu a mulher que reclamava de frio e tosse seca. Ela disse não ter interesse em fazer o teste de Covid-19 e pediu para usar os medicamentos cloroquina e azitromicina.

Após examiná-la e concluir que a paciente se encontrava com os sinais vitais bons, solicitou um eletrocardiograma, mas ela insistiu que apenas desejava tomar o “remédio do presidente”, insistindo na prescrição como forma profilática de tratamento ao mencionado vírus, propondo-se a assinar qualquer termo de consentimento.

O médico explicou que em vista do quadro clínico e da ausência de comprovação de eficácia científica, não se sentia confortável em prescrever aqueles medicamentos, além dos sintomas não indicarem a doença. Mesmo assim, ele chamou cinco colegas e todos foram unânimes em afirmar que, em razão de sua idade, a paciente correria risco de sofrer efeitos colaterais, o que inclui morte súbita durante a noite.

A mulher foi mais incisiva, falou que era advogada e que o processaria por não atender seu pedido, relatando que o presidente dos Estados Unidos da América tomava e que o presidente do Brasil havia autorizado o uso. Durante a consulta, a paciente ligou para outras pessoas como forma de coação, diz a ação, afirmando que os médicos do local eram comunistas por não prescrever o medicamento.

Com a insistência da mulher em afirmar que o processaria e faria boletim de ocorrência, o médico encerrou o atendimento, deixando claro que a prescrição dos medicamentos de combate à Covid-19 é a critério do médico, segundo orientação do Ministério da Saúde.

No dia seguinte, ele tomou conhecimento que a mulher foi ao Facebook e expressamente mencionou seu nome. Anexo à publicação, a requerida incluiu link de uma notícia sobre mortes que, segundo o médico, dava a entender que estas derivariam da recusa de médicos em prescrever o medicamento. Foi ele quem registrou boletim de ocorrência, entendendo que a postagem da ré o acusou de crime de omissão de socorro.

Além de se sentir ameaçado e coagido em seu ambiente de trabalho, o médico viu seu nome lançado de forma leviana em rede social. Ele atribui os fatos à politização extremada e dividida no país, o que inclui a pandemia de Covid-19.

A ré afirmou que não se recusou a realizar o teste de Covid-19 e que apenas queria iniciar o uso dos medicamentos solicitados com acompanhamento médico, mas que o médico respondeu que tinha ordens superiores para agir dessa forma. Admite que informou ao médico que solicitaria a lavratura de um boletim de ocorrência de preservação de direitos, “pois se viesse a falecer da doença seus 3 filhos que são advogados iriam buscar seus direitos na Justiça”.

A mulher também recorreu à liberdade de expressão e o direito à crítica. Alega que se o autor “se sentiu acuado por uma velhinha de quase 80 anos”, desculpa-se por não ser sua intenção, e que não se nega a publicar uma retratação em que declara que o requerente agiu da forma que entende ser mais correta. Disse que em nenhum momento houve qualquer ofensa à imagem ou à honra do profissional.

A polarização política

Ao analisar o mérito do caso, o juiz ressaltou que “lamentavelmente o que se observa hodiernamente é a polarização política de quaisquer assuntos, notadamente em redes sociais. Não se trata mais do debate saudável de ideias, mas de ataques grotescos e recíprocos, recheados de ofensas, intolerância e ódio, fomentados diariamente por blogueiros de ambas as vertentes, que usualmente espalham as chamadas fake news. E neste ambiente insalubre, é evidente que a famigerada pandemia de Covid-19, e o combate a ela, também foi politizada. E o que deveria ser uma questão meramente biológica se transformou numa batalha ideológica”.

O juiz visitou o perfil da ré nas redes sociais e concluiu que não resta a menor dúvida de que é pessoa de ferrenha posição política, e isso transparece não apenas no teor de sua contestação”. E completou: “Não há nada de errado nisto, eis que o Estado Democrático de Direito em que vivemos permite a qualquer pessoa expressar sua opinião política, dentro dos limites que a lei autoriza. E é exatamente a extrapolação dos limites que dá causa ao presente processo”.

O juiz instruiu a sentença com diversos entendimentos de tribunais superiores e citou até “efeito Dunning-Kruger”, que pode ser definido como “um fenômeno que leva indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto a acreditarem saber mais que outros mais bem preparados, fazendo com que tomem decisões erradas e cheguem a resultados indevidos; é a sua incompetência que restringe sua capacidade de reconhecer os próprios erros. Estas pessoas sofrem de superioridade ilusória” .

Leviana e insensata

Ainda conforme o juiz, o exercício de empatia, tão ausente nos dias atuais, nos permite experimentar a angústia, indignação e a vergonha sentidas pelo autor ao ver seu nome publicado pela requerida de forma leviana e insensata.

“E aqui se mostra oportuno mencionar outro fenômeno das redes virtuais: a bolha social. Na medida em que determinada pessoa mais e mais ferozmente defende determinada corrente ideológica em redes sociais, proporcionalmente mais e mais pessoas que discordam daquela ideologia, ou apenas se cansam de tantas notícias sobre o mesmo assunto, deixam de seguir as publicações daquela pessoa, ou simplesmente excluem sua amizade. Ao final, apenas pessoas que pactuam dos mesmos ideais continuam a segui-la, curtindo e compartilhando suas publicações. Neste momento, a pessoa se encontra numa “bolha social”, onde não há mais debate ou oposição, apenas pessoas que concordam com seus pensamentos, o que a leva cada vez mais acreditar que aquilo que ela defende é o certo”, diz outro trecho.

Para o magistrado, a mulher, infelizmente, não teve a sensibilidade de entender que o momento não se presta para hostilizar os profissionais da saúde, muito pelo contrário, “deveriam ser tratados como heróis, pois, assim o são. Arriscam suas vidas e as vidas daquelas que eles mais amam para combater a doença alheia. Estão na linha de frente, prontos para o “que der e vier”, e lamentavelmente ainda precisam passar por situações como essa”.

Foi neste momento que o magistrado pediu desculpas e sugeriu que toda a sociedade deveria se juntar e fazer o mesmo.

A ação foi julgada parcialmente procedente, pois a mulher se retratou depois de todo o constrangimento. Mesmo assim, terá de pagar 10 salários mínimos no prazo de cinco dias corridos, a contar da intimação, sob pena de incorrer em multa moratória diária de R$ 100 até o limite de R$ 10.000,00. A mulher ainda pode recorrer.

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.

error: Conteúdo protegido por direitos autorais.