A prisão em flagrante do deputado

Por Edmar Silva

Situação nada corriqueira tomou conta dos noticiários nessa semana: a prisão em flagrante de um deputado determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Referida prisão foi decretada em decorrência de um vídeo elaborado e publicado na Internet por um deputado tecendo comentários e críticas ácidas, enérgicas, direcionadas ao STF e aos seus respectivos ministros.

No aspecto material da conduta do deputado, parece, a princípio, que de fato ele extrapolou os limites do razoável e do seu direito à liberdade de expressão, invadindo o campo do ilícito, ainda que, em razão do nobre cargo que ocupa, esteja protegido pela imunidade parlamentar. Com efeito, em uma democracia nenhum direito é absoluto e toda e qualquer ofensa à própria democracia ou às Instituições que a representam ou, ainda, à Constituição Federal merece rigorosa punição.

Todavia, quanto aos aspectos formais da decisão, sobretudo no que diz respeito ao estado de flagrância, ressalvas devem ser feitas.

O termo flagrante tem origem no vocábulo latim flagrare, que significa aquilo que está queimando, ardendo, ou seja, aquilo que está acontecendo. Assim, tem-se o flagrante quando alguém é surpreendido no exato momento em que está praticando a conduta criminosa ou acabou de cometê-la, nos termos do art. 302, incisos I, II, III e IV, do Código de Processo Penal (CPP).

Mas no caso do deputado a prisão em flagrante se deu porque sua conduta foi tratada pelo STF como hipótese de crime permanente, que é aquele cuja consumação se estende no tempo. E assim ocorreu porque ele publicou o vídeo na Internet, permitindo, dessa forma, a consumação continuada e perene do crime, eis que acessível a todo instante por qualquer pessoa.

É certo que também existe a possibilidade de prisão em flagrante nessa hipótese, conforme permitido pelo art. 303 do CPP, mas o caso do deputado não se trata de crime permanente, pois a conduta se iniciou e findou no exato instante em que ele fez e publicou o vídeo, sendo que a posterior manutenção desse vídeo na Internet foi apenas um efeito, uma consequência, um exaurimento da conduta anteriormente praticada.

Nesse tocante, então, melhor seria justificar a prisão no art. 302, inciso II, do CPP, que considera em flagrante delito quem acaba de cometer a infração penal. Isso porque o vídeo havia sido gravado pelo deputado horas antes da decisão que determinou sua prisão.

Além do mais, segundo a Constituição Federal, parlamentares só podem ser presos em flagrante por crimes inafiançáveis (art. 53, §2º), entendendo-se como tais aqueles especificados pelo próprio texto constitucional: racismo, tortura, tráfico de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, os crimes hediondos e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV).

Ocorre que a conduta do deputado foi enquadrada pelo STF como crime previsto na Lei de Segurança Nacional, ou seja, fora desse rol de crimes inafiançáveis. E nesse ponto, justificou o STF que a suposta prática delitiva do deputado seria insuscetível de fiança porque presentes os requisitos legais da prisão preventiva, mencionando, como fundamento legal, o art. 324, IV, do CPP.

Mais um equívoco, porém, constata-se, na medida em que o referido dispositivo legal trata apenas de meras situações fáticas em que a fiança não será admitida, nada prevendo acerca de hipótese de crime inafiançável. Por exemplo, o inciso I, do art. 324, do CPP, estipula a impossibilidade de fiança ao réu já beneficiado com tal medida e que veio a descumprir as condições impostas pelo juiz. Já o inciso II prevê a impossibilidade de fiança em caso de prisão civil (alimentos) ou militar.

Como se vê, o artigo de lei mencionado pela Suprema Corte para justificar a inafiançabilidade do delito não prevê hipóteses de crimes inafiançáveis e sim situações práticas que impedem a concessão da fiança diante de um caso concreto. Em claras palavras, os crimes em tese praticados pelo deputado não são inafiançáveis.            

Nesse contexto, portanto, conclui-se que a decisão que decretou o flagrante do deputado deixou a desejar no aspecto técnico. Não se nega, contudo, que foi levantada nova hipótese de flagrante e que isso acendeu debate acalorado não só no meio jurídico, mas também no campo político-social, o que é extremamente salutar numa democracia.


Edmar Silva é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo. Formado em Direito, aprovado no exame da OAB-SP e pós-graduando em Direito Público.

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