A disputa de Lira e Pacheco e suas repercussões junto ao terceiro governo de Lula

por Leandro Consentino

O início do ano Legislativo no Brasil abriu caminho para um conflito que, antes contido, hoje já ganhou as páginas dos jornais e tem se aprofundado cada vez mais e repercutido, inclusive, no andamento das medidas do governo brasileiro: a disputa entre o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas), e o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD).

Em essência, o conflito tem se dado em torno do rito de aprovação das medidas provisórias (MPs): enquanto Lira busca manter o procedimento adotado na pandemia, dispensando ou modificando a análise de comissões mistas, Pacheco busca restaurar os trâmites constitucionais devidamente adotados antes da covid-19, exigindo o exame e aprovação das comissões mistas.

Antes da pandemia, o rito das MPs obedecia a um processo que se iniciava em uma comissão mista entre as duas casas do parlamento, de maneira paritária, com doze membros para cada uma. Em seguida, a análise era feita separadamente por cada um dos plenários, tendo a relatoria revezada ora pela Câmara, ora pelo Senado.

Com a eclosão da covid-19 e a transferência dos trabalhos para uma modalidade remota, o Supremo Tribunal Federal autorizou uma mudança de ritos que favoreceu sensivelmente a Câmara dos Deputados em detrimento do Senado: a indicação de todos os relatores ficou sob responsabilidade da Câmara, além de ganhar mais tempo de análise por ser a primeira casa a receber os textos das MPs.

Dado o encerramento da emergência sanitária, o natural retorno ao modelo original – em conformidade com a Constituição de 1988 – não está ocorrendo como esperado. Como a tramitação da pandemia ampliou fundamentalmente os poderes da Câmara dos Deputados – e, consequentemente, de seu presidente Arthur Lira – existe um interesse para manutenção do status quo. Os senadores, em especial o presidente da casa Rodrigo Pacheco, obviamente se opõem à permanência do modelo.

Nesse sentido, algumas soluções de compromisso têm sido buscadas. A primeira delas é a proposta de Lira pelo retorno das comissões mistas, mas com um número maior de deputados que de senadores, dado que o colegiado da Câmara possui um número sensivelmente maior que o do Senado (513 deputados federais contra 81 senadores). Tal proposta, contudo, não vingou por cristalizar um poder muito maior para a Câmara e seus membros e ser negada pelos líderes do Senado por desequilibrar o sistema bicameral.

Já em um segundo momento, vimos o próprio Poder Executivo se envolver neste imbróglio, a quem não interessa nem a disputa entre Pacheco e Lira e tampouco o fortalecimento deste último, que acumulou extenso poder durante o governo de Jair Bolsonaro, tentando mantê-lo neste terceiro governo de Lula.
Para amainar a crise, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT) propôs a aprovação de quatro MPs altamente relevantes com base no modelo antigo – a reestruturação dos cargos do governo, a recriação do “Bolsa Família”, as mudanças do “Minha Casa, Minha Vida’ e as questões ligadas ao Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais) – e deixando o resto das medidas para ser protocoladas como projetos de lei em regimes de urgência.

Embora ainda não se saiba se tal arranjo irá prosperar, já está nítido que a queda de braço entre Lira e Pacheco está vitimando, de maneira ainda mais frontal, o próprio governo de Lula. Decorrido o marco dos cem primeiros dias, o Executivo ainda não aprovou qualquer medida relevante vinculada ao Congresso Nacional e tampouco testou sua base parlamentar com vistas a medidas de maior vulto como a ratificação do novo arcabouço fiscal e do teto de gastos.

Mesmo que emplaque seu plano, o governo pode ter de repensar sua relação com o Legislativo de maneira mais ampla, perdendo, em partes, a prerrogativa de edição ilimitada de medidas provisórias e ficando refém dos presidentes das duas casas – em especial, Arthur Lira – e das lideranças partidárias, inclusive de partidos vinculados ao chamado “centrão”, que deram apoio a Jair Bolsonaro durante todo seu governo.

Além disso, o retorno de Bolsonaro ao Brasil pode reposicionar os oposicionistas no Congresso Nacional e dificultar ainda mais o andamento do governo, tanto em termos de aprovação de sua agenda como de blindagem de ministros com suspeitas de corrupção – como no caso de Juscelino Filho, das Comunicações – e, em última instância – do próprio presidente da República.

O risco maior para o governo é de que, prevalecendo o impasse, as medidas provisórias deixem de ter efeitos legais, decorridos os cento e vinte dias de prazo. Dessa maneira, as sete medidas, paradas no Congresso há mais de cinquenta dias, podem ser convertidas em uma enorme derrota para o Executivo, dando munição aos oposicionistas.

É importante ter presente que ainda existem doze medidas provisórias editadas no ano de 2022, sob o governo de Jair Bolsonaro. No caso destas MPs, em especial, o trâmite obedecerá ao rito da pandemia sem o exame das comissões mistas e, como a maioria já foi aprovada pela Câmara, deverá ter a chancela do Senado nas próximas semanas. Algumas delas, contudo, podem estrategicamente não serem votadas, a fim de que não produzam efeitos legais, dado o rompimento com a agenda do governo anterior.

Ante todo esse impasse, algumas lideranças acreditaram que o adiamento da viagem do presidente Lula à República Popular da China, por conta de uma pneumonia, teria a virtude de levar o chefe do governo a frear tais desavenças. O esforço, contudo, ainda não parece ter surtido efeitos e a disputa pode se prolongar até a nova data da viagem presidencial, em meados de abril, emparedando Lula em uma situação delicada.

Muito além de uma mera querela entre dois atores de peso no atual jogo político – Arthur Lira e Rodrigo Pacheco – a disputa pelo controle do rito das MPs pode determinar o rumo e o ritmo deste terceiro mandato de Lula, determinando o poder de agenda do Executivo e garantindo a eleição de aliados em 2024 e sua própria recondução em 2026. Ao revés, com a persistência dos problemas e uma base parlamentar frágil, a oposição pode emplacar prefeituras importantes no próximo ano e aumentar suas chances para voltar a ocupar o Palácio do Planalto nas próximas eleições gerais, marcadas para daqui a pouco mais de três anos.

Leandro Consentino é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Ciência Política pela mesma instituição. Atualmente, é professor de graduação no Insper e de pós-graduação na FESP-SP.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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