Os percalços de Lula em sua relação com o Congresso Nacional

Por Leandro Consentino

O início do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva já está profundamente marcado por disputas entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, como era previsto pelos analistas desde as eleições. Nesse sentido, o debate sobre a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar a autoria e execução dos atos antidemocráticos perpetrados em 8 de janeiro desse ano e a queda de braço do governo com o União Brasil são sintomáticos dessa crise.

Em primeiro lugar, há que se descartar a tese descabida de que os atos de 8 de janeiro foram levados a cabo por uma minoria de infiltrados da própria esquerda, dada a ausência de quaisquer provas que fundamentem essa tese. Dessa maneira, é inconteste que a autoria e execução recaem em simpatizantes e apoiadores de Bolsonaro e seus aliados, podendo ou não lhes envolver diretamente no curso da investigação.

Dessa maneira, causa estranhamento a muitos a postura do atual governo, conduzido pela esquerda, em não se empenhar na coleta de assinaturas e na instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) – a qual envolveria parlamentares tanto da Câmara dos Deputados como do Senado Federal – para a investigação de tais atos. Ainda mais espantosa é a postura da oposição, liderada pela ala bolsonarista do Partido Liberal, no empenho para tal empreitada no Congresso Nacional.

A compreensão deste fenômeno passa pelo fato de que a instalação de uma CPMI nesse momento poderia apurar não só a ação dos vândalos, mas também a omissão de certas autoridades, em especial no Ministério da Justiça e da Defesa. Ademais, poderia também provocar atritos entre o governo Lula e os militares diretamente envolvidos, seja por ação ou omissão, nos atos de8 de janeiro, rompendo o frágil equilíbrio que hoje se sustenta em tal relacionamento.

Por fim, mas de modo algum menos importante, a comissão teria o condão de atrasar ainda mais os trabalhos do governo no Parlamento, deixando em segundo plano os temas importantes para a retomada do crescimento econômico e da reconstrução de instituições esvaziados no governo Bolsonaro. Assim sendo, medidas como a aprovação de uma nova âncora fiscal e a complexa reforma tributária poderiam ser postergadas ou até mesmo perderem seu “timing” de aprovação, esvaziando a confiança do mercado no governo, já tisnada por declarações conturbadas do presidente Lula e de alguns de seus auxiliares mais próximos.

Conforme o dito popular corrente na política brasileira de que “todos sabem como começa uma CPI, mas ninguém sabe como ela termina”, o governo buscará ao máximo evitar a instalação ou dar força a essa investigação, sendo para ele mais fácil deixar tal prerrogativa ao Judiciário, em especial ao Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, o atual governo colheria o bônus de responsabilizar os envolvidos – em especial Bolsonaro e seu entorno mais próximo – sem precisar arcar com os custos políticos de brecar o governo ou acusar aliados de ocasião.

Afinal, é importante ter presente que Lula não conseguirá formar uma base parlamentar sólida apenas com congressistas da esquerda, precisando negociar alianças e espaços no governo com partidos do Centrão que, até bem pouco tempo, constituíam parte dos aliados do governo Bolsonaro. Dentre essas legendas, desponta o União Brasil que, recentemente, formou-se a partir da fusão do PSL (Partido Social Liberal) com o DEM (Democratas) e que, atualmente, vem criando, uma série de problemas a Lula e seu governo.

Os problemas iniciais já se deram na própria formação do Ministério quando Lula contemplou três nomes do partido, embora um deles – Waldez Góes (Desenvolvimento Regional) – ainda estivesse filiado ao PDT. Já os outros dois nomes – Daniela do Waguinho (Turismo) e Juscelino Filho (Comunicações) – mostraram-se pivôs dos primeiros escândalos nesse início de gestão.

Enquanto Daniela do Waguinho foi acusada de ligações com milicianos cariocas, Juscelino Filho aparece envolvido em suspeitas de corrupção ligadas a utilização de aeronaves públicas para fins privados e má alocação dos recursos de emendas do relator. Por ora, o caso da Ministra do Turismo parece ter saídos dos holofotes, mas a pressão sobre o Ministro das Comunicações tem crescido significativamente, com declarações públicas do próprio presidente Lula e da presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffman, de que Juscelino Filho deve explicações e, no limite, pode deixar o governo na próxima semana.

Lula, no entanto, hesita em afastar estes ministros, principalmente devido ao fato de que o União Brasil detém 59 cadeiras na Câmara dos Deputados e 9 no Senado Federal, fundamentais à governabilidade junto ao Legislativo. Com uma base ainda frágil nas duas casas, principalmente no Senado, o governo teme não possuir o apoio mínimo de parlamentares para aprovar medidas de impacto positivo (principalmente na área econômica) e conter medidas e ações que lhes causem prejuízos políticos.

A despeito dos esforços do governo e dos fartos indícios de irregularidades por parte do ministro, as relações de Lula com o União Brasil jamais foram marcadas pela tranquilidade, uma vez que a presença no governo não garantiu a fidelidade desejada pelo governo por parte do partido que já havia anunciado uma postura independente no Congresso Nacional.

Diante dos problemas acumulados pela instauração de uma eventual CPMI e do estremecimento das relações com um dos maiores partidos do Parlamento, fica nítido que o início do terceiro mandato de Lula pode ser bastante conturbado, com sérias dificuldades para a aprovação de medidas tão complexas como a reforma tributárias e até mesmo a nova âncora fiscal. Por essa razão, é importante que Lula busque abrir mais espaços em sua coalizão governamental para outros sócios e exija critérios mais sérios na indicação para as pastas ministeriais.

O eventual desgaste do governo já em seu primeiro semestre pode fortalecer a oposição – seja ao centro, seja na direita – e refletir em uma perda da popularidade presidencial e, consequentemente, um capital político menor para a disputa das eleições municipais de 2024. É importante lembrar que, se o que está em jogo neste processo eleitoral que se avizinha é o comando das prefeituras do país, um eventual revés do governo e de seus aliados pode reduzir as chances de permanência da esquerda e do próprio Lula no comando do Planalto em 2026.

Além disso, com uma oposição articulada e pouco afeita ao diálogo num quadro de paralisia congressual, Lula pode correr um risco ainda maior: enfrentar problemas inclusive antes das eleições e ver seu mandato encurtado em razão de um eventual processo de impeachment que alçaria seu vice, Geraldo Alckmin, à Presidência da República, estabelecendo uma aliança do centro à direita. Como se vê, se não mostrar que tem condições de governabilidade e perder a popularidade, o preço pode ser bastante alto para o presidente. Tal a razão de manter a retórica uns tons acima, fidelizando sua leal base na esquerda.  

Leandro Consentino é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Ciência Política pela mesma instituição. Atualmente, é professor de graduação no Insper e de pós-graduação na FESP-SP.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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