Olhar jurídico sobre o grafite e o artista urbano

por Mirna Kube e Paulo Cicolin

A arte é inerente ao ser humano, que sempre buscou registrar, por algum meio, seu inconformismo ou admiração pelo mundo. O grafite é apenas uma das formas modernas de expressão artística, que utiliza a cidade, com todas suas intempéries e nuances, como suporte.

As origens do grafite remontam à arte rupestre, passando pelos afrescos renascentistas, mas que começa a tomar forma mesmo com o movimento de escultores no final do século XIX, que já não suportavam mais o formato tradicional dos materiais nobres (mármore e bronze) para esculturas e espaços excludentes (museus e galerias) para sua apresentação, motivo pelo qual começam a expandir e ocupar outros espaços utilizando materiais como resíduos industriais, vidro entre outros.

Com essa percepção de romper com a exclusão da arte e, ao mesmo tempo, permitir que ela ocupasse o mesmo espaço que as pessoas normais, o grafite, tal como conhecemos hoje, surge no início dos anos 1970 no metrô de Nova Iorque e, rapidamente, influencia as principais cidades do mundo: Londres, Paris, Berlim, Tóquio, São Paulo entre outras.

O grafite nasce, portanto, com um perfil contestador e subversivo, mas que passou, com o tempo, a ser visto como uma ferramenta de democratização do espaço urbano e acesso à arte, sem deixar de ser crítico aos dilemas da vida, especialmente da vida na cidade grande.

No Brasil, o grafite deixou de ser crime, oficialmente, no ano de 2011, com a Lei nº 12.408/2011, que alterou o art. 65 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98). A pichação continua sendo crime no Brasil, que ainda a entende como uma forma de agressão ao patrimônio alheio.

Art. 65.  Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:      

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

§ 1º Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa. 

§ 2º Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.

Assim, por ser uma expressão artística, o grafite guarda proteção da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98), sendo segurado ao autor da obra todos os direitos morais e patrimoniais de sua criação.

O problema reside justamente no grafite realizado sem autorização do proprietário ou órgão público competente. Em regra, isto é, desconsiderando a especificidade do caso concreto, como um local que não cumpre sua função social, entende-se que, num grafite realizado sem autorização, ainda que permaneçam os direitos autorais sobre a arte, o proprietário ou órgão público poderiam destruí-la, pintando-a por exemplo.

Outro ponto de atenção e importância é que o autor do grafite não pode impedir o uso por terceiros, pois as obras localizadas em logradouros públicos podem ser livremente representadas, conforme dispõe o art. 48 da Lei de Direitos Autorais.

Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.

Contudo, de acordo com o entendimento predominante dos tribunais brasileiros, se o uso do grafite por terceiro possui o intuito de obter lucro, ainda que indiretamente, deve contar com a autorização do autor da obra, na forma do art. 78 da Lei de Direitos Autorais.

Art. 78. A autorização para reproduzir obra de arte plástica, por qualquer processo, deve se fazer por escrito e se presume onerosa.

A utilização indevida do grafite costuma ocorrer com bastante frequência na produção publicitária, em que a obra acaba por servir de pano de fundo para uma determinada campanha (roupa, carro etc), estimulando o consumo do produto justamente pela mensagem associada ao que aquele grafite representa.

Como a vida urbana parece estar cada vez mais corrida, apreciar e interpretar os grafites espalhados pela cidade é uma oportunidade de praticar um verdadeiro exercício cívico-cultural, instigando em nós a apreciação do belo e efêmero, tal como a vida é.

Mirna Mugnaini Kube é advogada, sócia do escritório Kube Cicolin Advogados. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Possui cursos na área de propriedade intelectual realizados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). Membro da ABPI – Associação Brasileira de Propriedade Intelectual.

Paulo Daniel Cicolin é advogado, sócio do escritório Kube Cicolin Advogados. Especialista em Política e Relações Internacionais pela FESP-SP. Possui cursos na área de propriedade intelectual realizados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). Mestrando em Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento pela Academia do INPI.

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.

error: Conteúdo protegido por direitos autorais.