O impacto de “Dois Estranhos”

Por José Farid Zaine
farid.cultura@uol.com.br
@farid.zaine

“Feitiço do Tempo”, ótimo filme de 1993, tornou-se um “cult”. Ele trata da história de um repórter que, numa pequena cidade, tem a tarefa de cobrir o chamado “Dia da Marmota”, tradição americana comemorada no dia 2 de fevereiro. Inexplicavelmente o repórter, vivido com a costumeira competência por Bill Murray, passa a reviver o mesmo dia, indefinidamente. O tema já foi abordado muitas vezes, mas “Feitiço do Tempo” virou uma referência.

O modelo retornou em 2021, num dos mais contundentes filmes da temporada, “Dois Estranhos” (Two Distant Strangers, disponível na Netflix), que levou o Oscar de Melhor Curta em Live Action na 93ª edição do Oscar, ocorrida no dia 25 de abril de 2021 em Los Angeles e outras partes do mundo. Raramente um curta tem a repercussão que esse teve.

É perfeitamente justificável. Reflexo imediato do assassinato de George Floyd em Minneapolis pelo policial Derek Chauvin, em maio de 2020, ”Dois Estranhos”, em apenas 32 minutos, consegue uma ligação fulminante com o movimento “Black Lives Matter”, que incendiou os Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. “I can’t breath” (não consigo respirar), apelo repetido por Floyd enquanto era sufocado pelo joelho de Chauvin, virou um slogan de múltiplos significados. A morte de Floyd, filmada ao vivo e espalhada por todo o planeta, logo passou a remeter a outras mortes de negros por policiais, como a da técnica de emergência médica Breonna Taylor, assassinada em Louisville, também em 2020, quando era realizada uma busca por drogas supostamente em posse de seu ex-namorado. Nenhuma droga foi encontrada no apartamento de Taylor.

“Dois Estranhos” começa com uma cena absolutamente normal: um homem se prepara para voltar para casa após uma noite de prazer com uma mulher linda, simpática e descolada, chamada Perri (Zaria Simone). Eles se divertem falando do encontro, da possível saída dele “de fininho” do apartamento dela, de como foi boa a noite para os dois e sobre as possibilidades de novos encontros. O homem, alto e preto, é um cartunista bem-sucedido chamado Carter James (Joey Badass) e apaixonado pelo seu cachorro, para o qual deseja voltar rapidamente.

Ao sair do prédio, na calçada, ele é abordado por um policial branco que, sem nenhum motivo, passa a revistá-lo com violência, tudo sendo gravado no celular por uma vendedora ambulante. A cena prossegue com a vinda de mais policiais e com a aterrorizante e conhecida ação de um deles – Merk ( Andrew Howard) – , que imobiliza o cartunista e o sufoca com o joelho em seu pescoço.

Todo mundo já viu essa cena. Mas, de repente, Carter acorda, novamente na cama de sua bela companheira, como se estivesse saindo de um pesadelo, mas cada momento do seu dia passa a ser revivido. E assim passará a ser sucessivamente, numa interminável repetição de um dia de medo e violência sem nexo.

Essa repetição, enfim, não reflete o cotidiano dos Estados Unidos e de muitos lugares do mundo, inclusive o Brasil? Quantos seres humanos são mortos diariamente por causa da cor de sua pele ,do seu tipo de cabelo, de sua etnia, de sua orientação sexual, de suas práticas religiosas?

“Dois Estranhos”, com simplicidade formal e precioso roteiro, consegue realizar o que muitos longas perseguem e não realizam: atingir por inteiro o seu objetivo. Nos créditos finais, o curta traz uma lista de nomes de negros assassinados por policiais, e ao lado de vários nomes surge algum detalhe: morto ao ir a um mercado, morto em sua cama, morto no portão de sua casa… Esses nomes precisam ser repetidos, clama o filme.

A cerimônia do Oscar, com toda a razão, esteve o tempo todo antenada com os recentes clamores da sociedade por justiça. Na abertura, em seu visual deslumbrante, a diretora Regina King (Uma Noite em Miami), negra, celebrou com humor crítico o fato de haver sido anunciada a condenação do policial Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd. Se isso não tivesse acontecido, ela disse que teria trocado seus saltos altos por botas para marchar. Foi aplaudida.

Com tanta dificuldade de “puxar o ar” nesses tempos sufocantes em que vivemos, a notícia da condenação de Chauvin pela justiça americana trouxe uma possibilidade aliviante de respirar livremente por breves instantes. Que o gritante apelo da arte, traduzido num filme indispensável, seja, cada vez mais, um instrumento na luta contra o racismo, a violência e a intolerância.

DOIS ESTRANHOS (Netflix)
***** ÓTIMO

José Farid Zaine é professor, graduado em História Natural e pós-graduado em Metodologia do Ensino de Artes. É poeta, membro da Academia Limeirense de Letras e da SOLL – Sociedade Literária de Limeira; compositor e cantor, integrante do Grupo Avena, também ator e diretor teatral. Criou a Orquestra Sinfônica de Limeira e outros projetos culturais vigentes na cidade de Limeira,onde atualmente é vereador licenciado ocupando o cargo de Secretário Municipal de Cultura. Farid é cinéfilo, tendo escrito críticas de cinema para veículos de imprensa de Limeira e região há muitos anos.

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