Não faço caridade!

Nestes tempos de resseção econômica, motivada pelas necessárias medidas sanitárias que visam conter o contágio, vimos a fome atingir significativa porção da nossa sociedade. Em nosso entorno imediato há dezenas (talvez centenas) de pessoas famintas. Isto é inaceitável!

A despeito da letargia dos governos e de inúmeras medidas emergenciais que esses deveriam tomar, mas não tomam, penso que cada um de nós deve assumir o protagonismo neste socorro imediato. A boa notícia é que isto tem acontecido.

Presenciamos inúmeras campanhas de arrecadação de alimentos e doação  de cestas básicas  que visam aplacar a fome dos mais vulneráveis. Muitos de nós estamos engajados numa ou noutra campanha solidária. Então, supondo tal engajamento, pergunto: tal gesto faz de nós pessoas caridosas? Embora sejam ações necessárias e urgentes elas bastam em si? Podemos repousar tranquilos após ter doado uma cesta básica?

Segundo a encíclica ‘Caritás in Veritate’ (Caridade na Verdade), documento de 2009, assinado pelo Papa emérito Bento XVI e que passa integrar o conjunto da Doutrina Social da Igreja Católica, o conceito de caridade não se restringe somente às microrrelações, mas assume uma dimensão macrossocial, abrangendo as questões sociais, econômicas e políticas, ou seja, a caridade exige de nós um olhar crítico para a estrutura social que é incapaz de garantir os direitos básicos à vida digna de todas as pessoas. O pontífice ainda reconhece que em nossos tempos a caridade se esvaziou de sentido e por isso é mal compreendida e excluída da vida ética, sobretudo na política.

Para o documento papal a caridade é inseparável da justiça social. Esta nos induz a dar ao outro o que é dele por direito, o que lhe pertence em razão do seu ser, melhor dizendo, eu não posso dar ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. E os bens necessários à vida digna configuram um direito, portanto, por princípio, ninguém poderia ser privado deles.

Assim, quando ajudamos alguém necessitado, somos convidados a nos perguntar se aquele gesto não foi apenas e tão somente a devolução daquilo que lhe foi tirado antes. A partir deste questionamento encontramos o que a encíclica chama de “verdade”, por meio da qual podemos compreender que a concentração de riqueza e o consumismo, em muito contribuem para a desigualdade social, que afeta não somente as pessoas que passam fome atualmente, mas toda a humanidade.

Para o Santo Padre esta é a verdade a ser alcançada na caridade” Caritás in Veritae”, sem a qual a atividade social acaba à mercê de interesses privados e às lógicas de poder, prejudiciais à toda nossa sociedade. Como dizia o educador Paulo Freire, “antes da caridade a justiça social!”

Por estas razões eu não faço caridade. Participo de várias campanhas de doação de alimentos, mas o que pretendo com isto é a justiça social!

Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista

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