Lei do Mandante: o que muda nas transmissões e no esporte predileto do brasileiro?

Por Rafael Rigo

A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.336/2021, conhecido como a Lei do Mandante. Antes de entender o que esse novo projeto visa, é importante ter em mente como os direitos de transmissão dos jogos são divididos desde 1998 no país.

De acordo com a Lei Pelé, os direitos de arena (direitos de transmissão) são compartilhados entre a equipe mandante da partida e a visitante, de forma que, para poder ser permitida a transmissão na TV, os clubes mandantes e visitantes precisam de um acordo com a empresa que televisiona o jogo. O mundo inteiro tem como lei que é o mandante que é o detentor desses direitos. O Brasil está adequando sua legislação ao que o mundo inteiro faz.

Esse projeto de lei é simples. Ele diz que, a partir de agora, o direito de arena é somente do clube mandante, e não mais do visitante. Quais as consequências práticas disso?

A TV só vai poder negociar com o time mandante e isso, em termos de legislação moderna, é um passo enorme para o Brasil, porque além de adequar nossa legislação com o que é feito lá fora, facilitamos em muito a disseminação do esporte como um todo, já que somos muito focados no futebol. Essa lei serve para outros esportes também, então o incentivo a outras modalidades será muito mais fácil.

No entanto, o novo projeto de lei ainda precisa ser aprovado no Senado e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, e não interfere nos atuais contratos entre clubes e as emissoras de televisão (especialmente a TV Globo).

Bolsonaro editou, em 2020, a MP 984 que previa basicamente as mesmas coisas que esse projeto de lei – só não previa essa hipótese de manutenção dos contratos já firmados. Dessa forma, criou-se uma insegurança jurídica enorme, tanto que o Flamengo fez transmissões na “FLA TV” e a Globo desistiu da transmissão do Campeonato Carioca.

Dessa vez, colocaram a cláusula que mantém os direitos para a Globo, o que é correto e perfeito do ponto de vista jurídico. Os contratos devem seguir. O contrato em vigor entre clubes da Série A e Globo é válido até 2024.

A Lei do Mandante chegaria para dar mais alternativas aos clubes brasileiros, que passariam a ter maior independência em negociações que envolvem direitos de transmissões. Além dos clubes passarem a ter maior autonomia, o torcedor passará a ter acesso aos jogos do seu time de forma mais democrática, resultando em uma maior visibilidade para as equipes. Vai ser uma democratização em termos de acesso ao conteúdo dos clubes. Eles poderão, por exemplo, colocar no contrato que estarão vendendo os direitos para a Globo e transmitir os jogos no canal deles do Youtube. A democratização em termos de público vai ser enorme.

No entanto, uma consequência desse novo formato de direitos de transmissão no país seria uma desigual distribuição de renda entre os clubes grandes e os ditos médios/pequenos. Só aconteceria (distribuição igualitária) em uma negociação coletiva, ou seja, se todos os clubes negociassem juntos. Os clubes teriam mais força, ganhariam mais… Isso pode acontecer? Pode, mas não vai.

Os clubes grandes vão pensar em si, e não no todo. Até tentaram incluir no projeto de lei um artigo que obrigava os clubes a negociarem de forma conjunta, mas ele foi vetado. Os clubes vão negociar individualmente e, é óbvio, o preço de um Flamengo, Corinthians, São Paulo, é diferente de um time menor. Nesse sentido, eles vão ter uma desvantagem. Há uma democratização do acesso aos jogos, ao conteúdo, mas também há uma elitização na distribuição do dinheiro. Os clubes maiores vão ganhar mais.

No projeto original, apresentado na Câmara, os deputados previam que esse direito de arena pertenceria também aos árbitros e técnicos. Eles aparecem, suas imagens são utilizadas, e entendo isso como correto. Mas essa parte foi vetada e apenas os jogadores ficarão com 5% dessa receita, que será entregue ao sindicato.

Outra regra interessante é que as empresas que transmitem os eventos esportivos são proibidas de patrocinar uma equipe ou mesmo de vincular suas marcas no uniforme, nos painéis… Isso permanece proibido. Uma empresa de TV não pode patrocinar o clube, até por uma questão de isonomia.

Uma renda importante nos caixas dos clubes é a do pay-per-view. Com a aprovação da Lei do Mandante, um questionamento feito foi como esse dinheiro seria impactado com o novo projeto de lei.

Provavelmente, o Premiere vai adquirir os pacotes e vai comprar os direitos de um Palmeiras e Corinthians. Agora, para a Globo, muitas vezes Cuiabá e Juventude não têm muito interesse. Eventualmente, a Globo pode focar no Flamengo, Corinthians, Palmeiras, Vasco, São Paulo e os clubes menores podem ser comprados por Rede TV, TV Aparecida… outros canais. O valor de um Cuiabá para Globo é “X”, para a Rede Vida, é “10Xs”. Se esses canais passarem um Cuiabá e Flamengo, será maravilhoso para eles.

A oferta de dinheiro da Globo para poder comprar os direitos de arena de um clube pequeno será menor em relação a uma Rede TV e nisso a gente começa a inserir o futebol em mais de um meio de comunicação. Conseguimos tirar esse estereótipo de que o futebol é da Globo.

Se pensarmos que a Amazon, serviços de streaming, ESPN e DAZN estão começando a comprar cada vez mais eventos esportivos, a tendência é que o valor dessas ofertas só suba. Eventualmente, uma Amazon fica com o Flamengo e a Globo tem que comprar o Cuiabá. Do ponto de vista geral, do futebol, o dinheiro que entra deve aumentar. O problema é a distribuição dessa renda, que deve entrar mais nos clubes grandes, e não nos menores.

Outro tema abordado foi uma possível “espanholização” do futebol no Brasil, tendo em vista essa desigualdade da distribuição na renda dos direitos entre os clubes. Não acredito em “espanholização”, porque quando usamos esse termo, falamos de uma dualidade entre Real Madrid e Barcelona, ainda que o Atlético de Madrid vez ou outra apareça.

Isso não deve acontecer no Brasil, que tem um povo que, além de apaixonado por futebol, é regionalizado. A torcida do Flamengo será enorme, mas a do Corinthians também será, assim como a do Palmeiras, do São Paulo… Podemos viver uma ‘espanholização’ em termos de sempre dois times disputarem os títulos, como, por exemplo, recentemente tivemos com Flamengo e Palmeiras. Mas não vai acontecer de só esses clubes ganharem por 10 anos – o São Paulo quase ganhou ano passado, o Internacional também. Esse ano o Atlético-MG tem chances…

Para acontecer a ‘espanholização’, os clubes precisariam ser muito organizados, e eles não são. O Corinthians é cheio de dívidas, o São Paulo está na mesma situação, Vasco… O cenário como um todo é de uma entrada maior de dinheiro nos clubes, para eles passarem a ter uma capacidade de organização melhor. Os clubes que possuem organização vão saltar muito na frente, vão negociar melhor os valores. Tem mais ‘players’ no mercado para o clube ir atrás do dinheiro que ele acha que merece e há uma menor dependência em relação à Globo.

Por fim, a tabela dos jogos seria impactada no país, já que cada detentor dos direitos de transmissão define qual o horário que determinada partida será disputada. Aí entramos no campo da especulação, já que a CBF ainda não decidiu exatamente como será. Mas quem compra o direito de transmissão, de fato, tem o direito de escolher se quer programar o jogo às 20h ou 21h. A tendência é que os direitos sejam comprados por, no máximo, quatro emissoras ou empresas de streaming.

As empresas vão fazer uma reunião com a CBF e, nessa reunião, ficará estabelecido o calendário. O campeonato não pode ficar “bagunçado” e a organização ainda é da CBF. Ela deve chamar os representantes dos clubes e das emissoras e fazer um calendário que atenda a todos.

Rafael Rigo é advogado atuante no Direito Empresarial e sócio do escritório Rafael Rigo – Sociedade de Advogados.

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