Chamar o presidente de genocida configura calúnia ou crime contra a segurança nacional?

Por Flávio Martins

COMO AFIRMO no meu “Curso de Direito Constitucional”, o direito à liberdade de expressão varia a depender do titular e do destinatário. Quanto ao TITULAR, é inegável mais ampla a liberdade de expressão do parlamentar (art. 53, CF), como a liberdade de cátedra do professor (art. 206, II, CF), a liberdade artística (art. 5º, IX, CF) e a liberdade de discurso religioso (art. 5º, VI, CF). Por sua vez, quanto ao DESTINATÁRIO dos comentários, há que se fazer uma análise distinta quando os comentários são feitos por cidadãos contra agentes públicos.

Dizer que o ex-presidente Lula é um ladrão, configura crime de injúria? Analisando os estritos parâmetros legais, a resposta seria afirmativa. Todavia, estamos diante de uma crítica (muito áspera e contundente) atinente à conduta pública do agente. O mesmo se refere ao crime de calúnia.

Quando se imputa a um agente político fatos considerados como crime, mas num contexto de crítica ácida e política, o fato não pode ser considerado crime. É a posição da doutora pela Universidade de Coimbra Selma Pereira de Santana, “as manifestações contra o(a) Chefe do Poder Executivo, ainda que formalmente se apresente como crime de calúnia, não poderão ser abarcadas pelo Direito Penal nas hipóteses em que forem elas revestidas de conteúdo crítico-político”.

Da mesma forma, absolutamente irrazoável é a aplicação da Lei de Segurança Nacional para tais críticas. Primeiramente, entendemos que a referida lei, com seus tipos penais amplos, vagos e abrangentes, não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Todavia, até mesmo para aqueles que a consideram vigente, a mera ofensa à honra do Presidente não configura crime contra a segurança nacional, tendo em vista que, como sustenta Heleno Cláudio Fragoso, só poderia essa lei ser invocada, se a ofensa for praticada com “propósito político-suspensivo”. Essa é a jurisprudência pacífica do STJ (CC 156.979, 3ª Seção, rel. Min. Felix Fischer; HC 640615/2021 etc.)

Nessa semana, por ter chamado o Presidente da República de “Genocida”, o youtuber Felipe Neto está sendo investigado criminalmente. Ao afirmar que o Presidente seria “genocida”, quis o youtuber imputar ao Presidente muitas das mortes decorrentes da pandemia de Covid-19, por conta de suas ações e omissões.

Com a devida vênia, não entendo estar presente o crime de genocídio, previsto no art. 6º, do Estatuto de Roma, já que ele exige o dolo de matar (“com intenção de destruir”). Na referida lei, o tipo penal que mais se aproximaria seria o do art. 7º, 1, k (“atos desumanos que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem a integridade física ou a saúde física ou mental”), que também configura crime contra a humanidade, de competência do Tribunal Penal Internacional. Embora eu entenda que eventual responsabilidade política e penal, nesse caso, se houver, deva ser nacional, supor ou alegar a prática de tais crimes não pode configurar calúnia, muito menos crime contra a segurança nacional.

Flávio Martins é professor de Direito Constitucional e de Direito Processual Penal. É autor de livros e palestrante. Instagram: @sigaoflavio
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