As tendências de sempre no direito do trabalho

Por Lucas Ciarrocchi Malavasi

As raízes do direito do trabalho podem ser traçadas de volta até o surgimento do trabalho livre, quando sua ocupação é ditada por sua vontade e não por sua condição (diferente de servos e escravos). Embora as leis só despontassem após a revolução industrial, a questão central a ser entendida é essa: a semente deste ramo do direito é a hegemonia da liberdade como modo de produção.

Mas a árvore do trabalho livre necessitou de poda desde o início. A liberdade econômica do tomador e a liberdade laboral do prestador nem sempre resultaram bons ramos e frutos. As realidades sociais impuseram desafios ao direito do trabalho assim como o clima inconstante testa a resiliência de tudo que é vivo.

A história da exploração do trabalho e o surgimento da reação sindical no começo do século XX é tão conhecida a ponto de não necessitar ser redesenhada aqui. Basta que relembremos das lições que ficaram: o direito deve ser sinônimo de paz social para empregador e empregado. Enquanto o primeiro precisa de parâmetros de referência para poder tocar sua atividade econômica com autonomia, interessa ao segundo ter asseguradas sua remuneração e sua integridade.

A experiência no século passado mostra o quão danoso pode ser a perda destes valores para ambas as partes. Mas ela também demonstrou que estes valores são mais situacionais do que absolutos. Da mesma forma que os empregadores sujeitaram-se a uma leva de regulações inéditas, os empregados e as forças sociais das quais participavam (sindicatos, em específico) viram surgir muitas flexibilizações.

Com as crises econômicas que assolavam o mundo no último quarto do século XX, o tom de desregulamentação do direito do trabalho era intenso. Flexibilização não era um conceito novo no Brasil, que já conhecera a Lei 4.923/65 (redução transitória de salário), a Lei 5.107/66 (que criava o FGTS e acabava com a estabilidade no emprego) e a Lei 6.019/74 (trabalho temporário). Entretanto, a conjuntura econômica das últimas décadas do milênio impôs a reorganização do trabalho com foco na produtividade, com ênfase no modelo japonês (Toyotismo) e na terceirização de mão-de-obra.

Neste período, houve um cabo-de-guerra extenso entre tomadores e prestadores de serviço. Tanto o judiciário quanto o legislativo se agarravam à esperança de ver realizado o projeto de estado do bem-estar social. Foram quase vinte anos até que a jurisprudência sedimentasse regras para terceirização e mais vinte anos para que surgisse a primeira legislação específica, já no contexto da recente reforma trabalhista.

A explicação de tamanha resistência era a crença de que a revolução tecnológica poderia reduzir o labor humano à obsolescência e, por conseguinte, o direito do trabalho. Porém, hoje se reconhece que a projeção era exagerada e que direito laboral apenas entrou em processo de renovação. De fato, a revolução tecnológica foi responsável pelo boom do setor terciário (serviços) e abriu mercados nunca antes conhecidos e gerou postos de trabalhos também inéditos.

No fim da década de 90, a transformação do entendimento foi tal que pessoas como o renomado sociólogo Domenico de Masi puderam sonhar com uma sociedade em que a taxa de emprego crescia enquanto a jornada de trabalho diminuía. Essa é uma tendência que se percebeu em alguns países europeus no séc. XXI, geralmente nações com altos índices de produtividade.

O Brasil, no entanto, amarga resultados insatisfatórios no ranking mundial da produtividade e que levou quase quarenta anos para conformar sua legislação às transformações da “terceira revolução industrial”. A aceitação da realidade demorou tanto que só aconteceu quando a quarta revolução tomava forma.

A atual pandemia do coronavírus foi o palco perfeito para dar visibilidade às transformações promovidas pelas chamadas gig economy (“uberização”) e economia do compartilhamento, ambas formas de “plataformatização da economia”. Se antes a digitalização da vida era ditada pelo esgarçamento do tecido social, hoje as pessoas são forçadas a manterem distância físicas umas das outras. Este afastamento compulsório nos deixou ainda mais dependentes de plataformas digitais para manter hábitos de consumo de forma segura e barata.

O aumento vertiginoso da demanda também foi responsável por nos mostrar os efeitos deletérios de alçar precocemente a protagonista um modelo de negócio ainda na “fase beta”. Muitas pessoas se assustam com o poder que as plataformas de aplicativo têm sobre seus fornecedores cadastrados. A baixa complexidade para começar para receber tarefas e remunerações tornou o serviço acessível a pessoas de todas as qualificações, o que tornou obsoleta a concorrência com trabalhadores profissionais.

A expressão “revolução industrial”, portanto, não estaria mais adequada. A tecnologia e o desenho de produção da primeira vieram obliterar o profissionalismo das associações de artesãos do passado, empregando pessoas sem a mesma qualificação do artesão para realizar micro tarefas que, combinadas, resultavam na produção do mesmo bem. Além disso, estes novos funcionários sem qualificação tinham rendimentos menores que os artesãos. Tudo soa familiar com os novos tempos.

Mas há diferenças, claro. O conceito de subordinação não consegue mais capturar a essência do trabalho desenvolvido. No novo modelo, o tomador não gere o prestador, que se autogerencia, decidindo até mesmo quanto tempo estará à disposição. Tampouco a empresa fiscaliza o serviço, pois a avaliação é inteiramente feita pelos clientes. Os incentivos à continuidade da prestação dos serviços são feitos por recompensas materiais e psicológicas que obedecem à mesma lógica de uma gincana, o que é chamado pelos estudiosos de “gamificação” do trabalho.

O que está por debaixo das diferenças, porém, é o mesmo embate sobre o alcance da liberdade. Por mais que análises apocalípticas sejam sedutoras, o momento atual é apenas mais uma rodada da história do trabalho livre como elemento-chave da produção econômica. Já estivemos aqui no passado e a história nos ensina que mais cedo ou mais tarde teremos que interferir, mas não necessariamente com as mesmas regras de antes.

Em verdade, a nova organização do trabalho não é tanto uma superação quanto é uma hibridização. O velho modelo não deixará de existir. O recorde histórico de contratações com carteira assinada para um mês de fevereiro ter acontecido em pleno 2021 parece indicar isso. Entretanto, como disse a socióloga Ludmila Costhek Abílio, a uberização pode não ser a regra, mas é uma tendência. A própria reforma trabalhista de 2017 já mostrava sinais de adaptação à filosofia de transformar o trabalhador em força de trabalho pura, que só é remunerada pelo que efetivamente produz.

Dessa forma, o futuro do trabalho será marcado pela abrangência e hibridização. Pode não ser o admirável mundo novo imaginado por Domenico de Masi, mas também não será a superação do modelo empregatício projetado no início do século passado. Na verdade, será uma conjunção de ambas as coisas e o direito do trabalho terá que lidar com isso.

Lucas Ciarrocchi Malavasi é advogado e sócio no escritório Cláudio Zalaf Advogados Associados – lucas@claudiozalaf.com.br

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