A Uberização e a precarização do trabalho

por Joice Fernanda Pio

Desde o início da humanidade o trabalho se fez imprescindível, uma vez que através deste que o ser humano procura satisfazer suas necessidades pessoais e sociais. O Trabalho é inerente ao homem, entretanto a origem do Direito do Trabalho veio somente após períodos desastrosos e de muitas desigualdades, como por exemplo, a sociedade pré-industrial.

Ao utilizar a concepção do jurista e doutrinador brasileiro Maurício Godinho Delgado, nota-se a divisão histórica da evolução do direito do trabalho, distribuindo nas seguintes fases: formação do direito do trabalho, sistematização e consolidação, institucionalização e pôr fim à fase de crise e transição.

A primeira fase (formação do direito do trabalho) ocorreu em 1802 a 1848, aqui os direitos trabalhistas não eram sequer cogitados, todavia ocorreram os primeiros movimentos em relação às formas abruptas de violência, de modo que esse período visou à redução da violência e exploração a mulheres, crianças e acidentados, concedendo um caráter humanitário.

A segunda fase (problematização e consolidação), iniciou em 1848 até a primeira guerra mundial, caracteriza-se por momentos históricos importantes como a Manifesto comunista de Marx e Engels (1848); Revolução Francesa (1848); o surgimento da Encíclica Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII, documento em que a igreja católica finalmente se posiciona sobre a postura abusiva e desumana, exigindo assim do Estado uma atitude sobre o assunto em questão.

Outros fatores importantes para esse período foram a Revolução Francesa de 1848 e a intervenção da igreja. Houve um destaque para a doutrina social da igreja e um dos seus principais documentos a Encíclica Rerum Novarum, criada pelo Papa Leão XIII em 1891 que se baseava na justiça social, com o entendimento de que o Estado e a burguesia deveriam ser mais compreensivos e basicamente se exigia do Estado maior regulamentação das relações trabalhistas.

Neste contexto, começam a surgir, os movimentos sindicais, visando à obtenção de melhorias para as classes, assim como o início lento de uma intervenção estatal na organização do trabalho.

A terceira fase (institucionalização), compreende o período entre 1919 até o final do século XX, nesse período a legislação autônoma do Direito do Trabalho ganhou consistência, incorporando às ordens jurídicas dos países. O Direito do Trabalho passou a ser assimilada a estrutura social.

Em 1919 ocorreu a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com a convicção primordial de que a paz universal e permanente somente pode estar baseada na justiça social, o órgão passou a desempenhar papel de destaque com a elaboração de convenções e recomendações sobre diversos aspectos trabalhistas.

Essa fase teve seu apogeu nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial com a constitucionalização do Direito do Trabalho e a hegemonia do Estado do Bem-Estar Social. Ressaltam-se marcos essenciais para essa fase, as constituições, as quais são: Constituição Mexicana de 1917 que foi a primeira Constituição a incorporar os direitos sociais, com enfoque nos direitos trabalhistas e a Constituição de Weimar de 1919, essa Constituição da República alemã representou o auge da crise do Estado liberal, ao prever diversos direitos sociais, sendo posteriormente incorporadas as convenções aprovadas pela OIT.

A quarta fase (crise e transição), considerada como última, iniciou em 1980, após a crise do petróleo e se estende até os dias atuais. As mudanças tecnológicas das últimas décadas contribuíram significativamente no modo como as pessoas interagem, assim as barreiras de tempo/espaço existentes antigamente, hoje são facilmente resolvidas. Ao somatizar a evolução tecnológica com o contexto de crise econômica e organizacional observa-se que o direito do trabalho está sofrendo constantes mudanças tanto no âmbito nacional, como internacional.

Nessa fase surgem movimentos de desregulação das políticas sociais e das regras jurídicas, com a crescente flexibilização do Direito do Trabalho, de forma que para alguns essa crise caracteriza a ruptura final do ramo trabalhista, mas para outros esse momento é transição para a renovação do Direito do Trabalho, sendo necessário reafirmar a importância desse ramo para a redução das desigualdades do capitalismo.

A formação e a transformação do Direito do Trabalho no mundo impactaram o surgimento desse ramo no Brasil. No entanto, a origem do direito trabalhista brasileiro se faz diferente em relação ao surgimento desse movimento mundial, seja em razão do momento histórico de origem, seja pelo contexto econômico e social brasileiro.

Em relação à origem e evolução do Direito do Trabalho no Brasil, há muitas particularidades, assim ao contrário dos países europeus, o Brasil foi primeiramente colonizado por Portugal tendo sua economia até o final do século XIX voltada para a agricultura e pecuária com pequeno desenvolvimento industrial. Inicialmente, as relações de trabalho eram desenvolvidas pelos índios, porém não foram suficientes por diversos fatores, assim os negros foram trazidos ao Brasil para atender as necessidades mercantis e de mão de obra.

O contexto social e econômico brasileiro diverge em relação ao europeu, pois enquanto na Europa os trabalhadores de forma gradual lutavam pela melhoria das condições de trabalho, no Brasil a luta baseava-se pela sobrevivência e liberdade.

Entre o período colonial e a abolição da escravidão em 1888, poucas foram as manifestações de normas atinentes às prestações de serviços, pois a mão de obra utilizada era basicamente a escrava, de forma que pelas condições escravistas existentes e pelo tipo de economia não havia condições significativas para o surgimento das leis trabalhistas.

O Direito do Trabalho no Brasil é dividido em fases, que são: manifestações incipientes, institucionalização e transição. Contudo, há quem defenda que o direito trabalhista brasileiro se encontra em uma crise, razão pela qual continua em processo de formação.

A primeira fase (manifestações incipientes ou esparsas/1888-1930), teve como marco inicial a Lei Áurea de 1888, se caracterizando por uma atuação jurisdicional mínima, não intervencionista e na grande divisão entre a esfera pública e a esfera privada. Em observância a estes aspectos, percebe-se que este modelo estatal não garantia direitos trabalhistas, mas foi a partir dele que começaram a surgir os primeiros movimentos emancipatórios, ainda que tímidos. Assim, foram editadas algumas legislações trabalhistas que são respectivamente: o Decreto Legislativo nº 1.150/1904, trazendo facilidades para o adimplemento das dívidas dos trabalhadores rurais; Decreto Legislativo nº 1.637/1907, permitindo a criação de sindicatos e sociedades cooperativas; Lei nº 3.724/1919 trouxe normas sobre a legislação acidentária do trabalho; a Lei nº 4.682/1923 (Lei Elói Chaves) que possibilitou a criação de caixas de aposentadoria e pensões para ferroviários, que foram estendidos às empresas portuárias e marítimas; Lei nº 4.982/1925 possibilitando férias de 15 dias anuais para empregados em estabelecimentos comerciais, industriais e bancários e por fim o Código de Menores que estabeleceu a idade mínima de 12 anos para o trabalho com a proibição do trabalho noturno e minas.

A segunda fase da divisão do direito do trabalho no Brasil (institucionalização (1930-1945), nesta fase, o modelo de Estado vigente é o Social, onde passa a existir um maior intervencionismo estatal a fim de buscar a promoção da igualdade, uma vez que a igualdade meramente formal do Estado Liberal se mostrou incapaz e injusta para normatizar as relações trabalhistas. O trabalho foi reconhecido enquanto instrumento de promoção pessoal e social, de forma que este se elevou à condição de direito fundamental, social e humano. Dessa forma, os direitos trabalhistas foram vistos como importante instrumento de fortalecimento da cidadania e da produtividade capitalista. Nesse período que o Direito do Trabalho se consolida como ramo jurídico autônomo e institucionalizado, de forma que a jurisdição muda na medida em que o juiz passa a se preocupar com a finalidade interpretativa da norma, conforme os valores previstos na Constituição.

A terceira fase da divisão do direito do trabalho no Brasil, é conhecida como transição democrática do Direito do Trabalho, onde o modelo justrabalhista tradicional brasileiro sofre um substancial questionamento que acaba por resultar na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (DELGADO 2018).

O novo modelo estatal possui como característica o pluralismo cultural e moral, acompanhado da multiplicação de direitos e das ordens normativas. A multiplicação de direitos é fator relevante que leva ao surgimento dos direitos de terceira geração, caracterizados pelos seus destinatários difusos.

De forma atual e ainda com pensamento nessa divisão histórica do direito do trabalho, estamos vivendo hoje no Brasil o período pós-reforma trabalhista que ocorreu em 2017. As leis trabalhistas em vigor e principalmente a Consolidação das Leis do Trabalho, buscam equilibrar as relações entre empregado e empregador, definindo em seus artigos, direitos, deveres e garantias.

Logo, um empregado que possui registro na Carteira de Trabalho e contrato ativo, possui trabalho formal e com ele uma série de direitos como 13° salário, férias remuneradas, FGTS, assistência médica, vale transporte, seguro-desemprego, licença maternidade, entre outros benefícios a depender da categoria.

Por outro lado, temos os trabalhos informais, que são realizados de forma autônoma, sem contrato, como por exemplo, empregados no setor privado sem carteira assinada, empregador sem registro no CNPJ.

Atualmente, vivemos um cenário caótico de instabilidade e desemprego, no qual trouxe o aumento da informalidade das relações trabalhistas, assim como a flexibilização de alguns direitos. Esse contexto, somado a ascensão tecnológica, fez surgir o modelo de negócio, chamado UBERIZAÇÃO.

O termo UBERIZAÇÃO faz neologismo a plataforma Uber, e na prática utiliza plataformas digitais e tecnologia da informação para unir oferta e demanda. Desta maneira, existem empresas que intermedeiam os serviços entre cliente e prestadores de serviços através de um novo ambiente tecnológico, podemos citar como exemplos: Uber, Mercado livre, 99, iFood, dentre outros.

Umas das principais características da Uberização, norteia-se pela suposta ausência de vínculo empregatício, ou seja, não existe um contrato formal entre as partes, não existe definição de horário, remuneração e não há qualquer garantia ao trabalhador na prestação de serviços. Em justificativas sobre ter ou não vínculo empregatício, é argumentado sobre a utilização de economia de compartilhamento, no qual os profissionais são autônomos e trabalham conforme a demanda.

O movimento trazido pela informalidade laboral e ascensão tecnológica, traz para a sociedade várias indagações sobre o futuro do direito do trabalho e como serão as novas modalidades. Não é de hoje que as relações de trabalho sofrem alterações, porém os questionamentos sobre esse novo modelo de negócio, versa no sentido de: A flexibilização das relações de trabalho dá maior autonomia ao trabalhador, ou é uma forma de precarização do trabalho? Essas plataformas digitais realmente não possuem vínculo empregatício, ou se escondem em conceito de economia de compartilhamento gerando um falso senso de liberdade para lucrar bilhões? Cabe a nós, com um olhar ao passado e um senso crítico para o futuro, respondermos essas perguntas.

Joice Fernanda Pio é advogada, membro da Comissão de Direitos Humanos OAB/Limeira e pós graduanda em direitos Humanos pela Universidade Anhembi Morumbi.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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