A cronista das mulheres

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

“Ele tá fazendo de tapete o seu coração
Promete pra mim que dessa vez você vai falar não
De mulher pra mulher, supera
De mulher pra mulher, supera”

Marília Mendonça.

Um dos últimos shows presenciais que assisti antes da pandemia foi o de Odair José em 2019, no espaço Cultural Casa Laranja em Limeira.

Na época, eu apresentava ao lado do meu amigo Thiago Pilon, o programa Toca Brasil na Rádio Magnificat FM e pautamos entrevistar o então considerado “cantor das empregadas domésticas” nos anos 70.

Odair, intitulado como artista do brega, vendia discos feito água e sua penetração nas massas populares era imensa, batendo Roberto Carlos na popularidade em vários momentos.

Qual era o segredo? Na entrevista o compositor disse a este escriba: “sou um cronista das ruas, daquilo que as domésticas, os operários, os pobres vivem, sentem e falam”.

Odair José, em várias canções, apresentava alguma tintura polêmica e nos fazia pensar que escrevia sobre concepções no mínimo masculinizadas e do ponto de vista do “macho alfa”. Mas tinha razão ao afirmar o que representava sua obra.

A ida da goiana Marília Mendonça para os céus na última sexta-feira, dia 5 de novembro, no acidente aéreo estúpido, provocou uma comoção nacional que atingiu e ainda atinge a todos os brasileiros, fãs ou não, conhecedores de sua obra ou não.

Este que vos escreve só foi ouvir pela primeira vez Marília há alguns dias, por meio do disco “Patroas”, gravado com a dupla Maiara e Maraísa.

O preconceito aliado a ignorância faz com que uma parte considerável de brasileiros não conheça ou faz juízo de valor precipitado sem refletir sobre o que representava ou representa um artista.

O trecho que abre o ensaio de hoje relata a conversa de duas mulheres, amigas, confidentes, onde a narradora adverte e puxa a orelha da ouvinte sobre o caso de amor que a mesma está vivendo.

Um amor onde a relação é abusiva e violenta. Onde o macho acha que pode usar e abusar, fazer e desfazer da mulher como bem entende.

Marília escreveu que é hora de dizer não, porque quando uma mulher diz não é não. A menina de 26 anos nasceu em uma época onde os ventos da democracia estavam a todo vapor e era possível conversar sobre tudo, até porque a internet consistia em uma ferramenta capaz de espalhar informações ilimitadas.

Aos 14 anos, na flor da adolescência, Marília Mendonça já fala de amor, na ótica feminina e das mulheres pobres e trabalhadoras. Talvez a garota loura ainda não tinha noção de que apostava com suas letras em uma revolução e que aquilo era uma luta de gênero.

Uma revolução primeiro por se tratar do meio em que ela atuava, o sertanejo e seu ambiente machista e às vezes um lirismo que não atinge as grandes massas.

‘MM’ relatava, em segundo lugar, as histórias cotidianas de mulheres que sofrem por amor, mas não morrem por ele. São leais, mas não submissas. Exalam alegria e esperança. Reparem que a cantora, ao interpretar canções, estava sempre sorrindo, como na vida.

Em terceiro ponto, Marília Mendonça fazia questão de não perder suas origens, humilde e simples.

O compositor Maurício Pereira, ex Mulheres Negras, escreveu um texto em sua conta no Facebook e que considero o melhor até agora sobre a ‘Rainha da Sofrência’.

Mauricio diz que Marília inova até quando fazia publicidade de seus shows gratuitos em praça pública. Ela fazia questão de ir distribuir panfletos e conversar com as pessoas nas ruas. O artista tem que estar onde o povo está, já dizia o poeta. A garota do interior do Brasil em sua curta permanência entre nós buscou realizar isto na essência. Mesmo na pandemia, não deixou de se comunicar com milhões de pessoas.

O ídolo que se identifica com seu povo nunca é esquecido. O ídolo que se identifica com seu povo representa os anseios deste mesmo povo. Forma opinião, traz convicção e aponta caminhos.

Marília Mendonça, que foi “ele não” em vida, manteve, antes de partir, sua identidade: tomou a segunda dose da vacina, gritou “viva o SUS” e falou pelas redes sociais com centenas de pessoas.

A menina, que enfrentou a gordofobia, o machismo e que cantou o amor sobre a perspectiva das mulheres, vai fazer uma falta danada, mas nos enche de esperança.

MARÍLIA MENDONÇA PRESENTE

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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