Natal sem fome??

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem

Manuel Bandeira

Fui conhecer o poema acima no início dos anos 90 do século passado, ainda no governo Collor. Naquele tempo, vivíamos dias difíceis de um presidente que cometeu um estelionato eleitoral ao prometer combater a corrupção e que, em menos de três anos, foi flagrado cometendo o que combatia no discurso em campanha em 1989.

O Brasil daquele período vivia a aventura de um mandatário que andava de jet ski, usava camisetas com frases prontas em suas caminhadas para mostrar seu vigor físico e saco roxo, como ele vociferava, e via também uma outra realidade.

A do Brasil com S como, escreveu Aldir Blanc na canção Querelas do Brasil. 

Este país tinha uma inflação (acreditem, era isto) de 80% ao mês, com a poupança dos pobres roubada pelo aventureiro do Planalto e, claro, com a miséria e a fome galopando, ou melhor, a jato, igual os brinquedinhos da República Colorida.

Mas Manoel Bandeira aparece em minha cabeça, em uma manhã, ao ver uma foto na capa do jornal Folha de São Paulo.

A fotografia trazia uma criança, uma menina de no máximo seis anos de idade, sentada ao chão de um beco sujo da capital São Paulo, com um pedaço de pão duro nas mãos. A imagem chocou a todos nós, pois o Bicho do poema acima era real, não fazia parte de versos imaginativos, um sonho sendo escrito.

Era real, palpável, e se morria de fome.

Anos depois, com Collor deposto, a solidariedade se impôs com um maravilhoso ser humano, Herbert de Souza, o Betinho, o irmão do Henfil de canção do mesmo Aldir, cantada brilhantemente por Elis Regina em 1979.

A Ação da Cidadania mobilizou milhares de pessoas para ajudar milhões abaixo da linha da pobreza. No início sem apoio governamental, mas depois a luta popular faz pressão e força os governos a assumirem a responsabilidade que é sua, de algo que ele provocou. Betinho, neste período, intitulava a campanha como Natal sem Fome, título deste artigo.

Sua campanha, como dissemos, foi importante para unir esforços para retirar a fome do mapa mundi. Já nos governos FHC, iniciativas foram tomadas para tentar diminuir. Porém, foi no Governo Lula que a fome foi tratada como prioridade de mandato. Podemos ter críticas aos 14 anos do PT e das esquerdas no poder, mas não podemos negar que a cidadania foi levada aos lares brasileiros, algo que, antes de Betinho, não acontecia.

Dados governamentais dão conta que neste período foi possível incluir acessibilidade a direitos mais da metade dos 50 milhões abaixo da linha da pobreza constatados em 2002.

As três refeições diárias prometidas chegaram às famílias por meio de programas sociais de renda mínima, como o Bolsa Família, incentivo a geração de empregos e outros.

Não se resolveram todos os males que se leva a fome, pois um dos erros da gestão não foi ter enfrentado a necessidade de fazer reformas profundas que pudessem distribuir renda de forma concisa e permanente. No entanto, estatísticas também dão conta que a fome estava sumindo do mapa.

Mas agora a pergunta que não quer calar do tema de hoje: este Natal foi e está sendo sem fome? A julgar pelos acontecimentos, não.

Estatísticas do Estado e Organizações Mundiais dão conta de que temos mais de 25 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Nas últimas semanas, nove Estados brasileiros registraram dezenas de saques a supermercados por cidadãos à procura de comida.

O padre Júlio Lancelotti, ícone da luta em defesa das comunidades de rua e dos pobres, tem denunciado diariamente casos reais, e não casuais, de fome entre as pessoas. A mais recente, de um bebê com menos de seis meses de idade, encontrado nas ruas sendo alimentado com água misturada com maisena. Desnutrida, a criança poderia ter morrido.

A imprensa tem noticiado fatos que assustam aqueles que ainda tem o que comer. Seres humanos comprando ossos, caçando bichos peçonhentos e outros para se alimentar.

O ex-superministro, ex-Posto Ipiranga, Paulo Guedes, na linha do seu governo que defende ricos, foi categórico em dizer que a culpa pela fome voltar ao mapa não é do seu governo, que até agora não apresentou nenhuma politica de segurança alimentar, pelo contrário, cortou tudo que havia antes.

O amigo de banqueiros culpa a classe média pelo aumento da mendicância e das mortes pela fome. Diz o sujeito que ela, a classe citada, desperdiça comida, então ele defende que restaurantes distribuam os “restos”, as sobras, para os pobres.

Portanto, o Natal de 2021 foi calamitoso e triste para milhões de famílias, que, como dizia Belchior, o ano que vem dirão: “Ano passado eu morri”.

Feliz Natal e espero que, daqui a 12 meses, possamos dizer isto sem fazer a pergunta do título.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

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