A miséria me interessa!

Por Ronei Costa Martins Silva

A pandemia acentuou nossas misérias humanas. Mas ao contrário do que muitos pensam ela, a miséria, interessa muito, embora, relutemos em admitir.

Dia destes uma senhora se ofereceu como faxineira numa rede social. Sua diária custaria cinquenta reais. Costumeiramente, na nossa região, a depender do tamanho da residência, cada faxina custa algo entre cem e cento e cinquenta reais.

Diante da disposição daquela senhora, muitos de nós poderíamos encontrar nesta sua oferta uma atrativa oportunidade para economizar até cem reais. Um ótimo negócio, diríamos nós.

Ocorre que esta mulher está em estado de extrema necessidade. Ela e provavelmente sua família estão passando fome. Por isto a ela não restou outra alternativa que não fosse oferecer-se à voracidade gananciosa de todos nós. Sem escolha, ela trabalhará em troca de um salário de fome, porque precisa comer e dar comida aos filhos.

Se escolhermos contratá-la pelo valor de cinquenta reais, estaremos extraindo um benefício particular de sua condição de desespero. Economizaríamos uma grana, graças ao dolorido fato de que ela passa fome, pois se estivesse em condição mais favorável, ela jamais venderia sua força de trabalho por um valor tão baixo.

Daí se extrai que, no fundo no fundo, embora nós jamais admitamos publicamente, a miséria alheia nos interessa sobremaneira, pois contribui para manter o valor da força de trabalho do outro sempre abaixo do que de fato poderia valer. E esta pressão sobre os mais vulneráveis garantirá a realização dos serviços que queremos contratar, pagando um valor bem mais baixo.

Esta é certamente uma das razões por meio das quais muitos de nós criticamos programas de transferência de renda como o Bolsa Família, afinal, uma ajuda do governo para salvar as pessoas da miséria, afetaria esta relação desigual na qual a faxineira se oferece para trabalhar de barriga fazia. Com a barriga cheia ela cobraria cem reais e nós perderíamos a oportunidade de extrair um benefício financeiro de sua condição vulnerável.

No início do século XIX, o filósofo alemão, Karl Marx escreveu que “a fome do trabalhador é a principal arma nas mãos daquele que compra sua força de trabalho”. Daí se extrai que é preciso haver fome (nas mais variadas dimensões) pois ela empurra o ser humano para as margens de um abismo, no qual ele, sem alternativa, se vê obrigado a agarrar qualquer proposta, mínima que seja, para não cair no precipício.

Finalmente, se esta percepção da relação entre diarista e eu, mediada pela miséria, for ampliada e se conseguirmos olhar, a partir desta perspectiva, para o conjunto da sociedade, notaremos então que a fome e a miséria não são acidentais, mas sim coadunam numa clara estratégia do modelo econômico atual. E diante desta constatação também veremos que a miséria dificilmente será eliminada, pois ela afeta as relações mediadas pelo dinheiro, sempre favorecendo que o detém.

Não entendo de macroeconomia, portanto não sou capaz de sugerir um plano que emancipe dignamente todas as pessoas, mas, arrisco que tal ousadia poderia começar por um antídoto bem simples: a empatia.

A monetarização das relações levou-nos, enfim, à desumanização. Patrimonialistas que somos, individualizamo-nos feito ilhas. Solenemente ignoramos que somos um corpo social, cujas dores dos membros mais simples, afeta o corpo todo. E neste inevitável processo, tornamo-nos incapazes de sentir compaixão (do grego “cum-passio” – que significa “sofrer junto).

Aquela senhora que se ofereceu como diarista por cinquenta reais, está em estado de necessidade e até de desespero. Se a nossa compaixão for maior que a nossa ganância sentiremos suas dores e a acolheremos com um salário digno.

Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista e pós graduado em arquitetura e arte sacra. Possui diversas obras de arquitetura sacra espalhadas por São Paulo e outros três estados. Em 2018 foi convidado para presentear o Papa Francisco com uma obra sua, a Cruz da Esperança. Possui onze obras de arquitetura selecionadas para Mostras Nacionais, sendo duas em 2017 e nove em 2019.

Também é pesquisador da máscara do palhaço há 22 anos, tendo atuado em hospitais, presídios e outros espaços de vulnerabilidade social. É pai do Benício.

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