Mulher cansa de ser chamada de “cabelo duro” no trabalho e gerente é processado por injúria racial

Duas situações comprovadas em ação penal movida pelo Ministério Público (MP) por injúria racial levaram à condenação de um gerente comercial, com sentença assinada na semana passada, em 30 de dezembro de 2023.

Ambos os crimes aconteceram no ambiente de trabalho contra uma mulher, negra, também gerente, mas do setor financeiro. O que para o réu seria “uma brincadeira”, para a vítima foi humilhação e ela se cansou. A primeira providência foi registrar o caso na polícia.

Na primeira situação descrita, consta que em fevereiro de 2021, perto da hora do almoço, a mulher estava em sua sala no setor financeiro, momento que adentrou o gerente e, após ele cumprimentar todos presentes e falar sobre trabalhos de rotina, ele mencionou que estava com fome, pois ainda não havia tomado café. A mulher sugeriu a ele se servir de café e bolacha e comentou que, por ele ser esportista, poderia se servir de banana. Na sequência, o homem diz: “Se eu jogar uma banana para cima vocês saem pulando”.

Havia quatro pessoas na sala, mas conforme a vítima, a frase foi dita pelo réu com olhar fixo para ela, que o advertiu dizendo: “Vai continuar com suas brincadeiras sem graça?”. O homem saiu da sala sem responder, rindo.

Dois dias depois, também por volta de meio-dia, a mulher foi convocada para comparecer à sala de reunião da diretoria e havia mais cinco pessoas, entre eles o gerente, que informou a todos o seu desligamento da empresa e que iria cuidar dos projetos de sua vida, momento que ele se direciona a cada um e se despede até que na vez da vítima ele disse: “É a sua vez […] do cabelo duro”. Ela, mais uma vez, o repreendeu: “Até no último dia vai continuar com suas brincadeiras sem graça?”. Houve silêncio, ele se despediu de todos e foi embora.

Na delegacia, a mulher afirmou que se sentiu ofendida em sua honra e com receio de propagação dessas ofensas, manifestou o desejo de representá-lo criminalmente.

Após relatório final da polícia de Itapevi (SP), o caso foi para o Ministério Público que, após diligências, denunciou o gerente como incurso nas sanções do artigo 140, § 3º, do Código Penal, por duas vezes, na forma do artigo 69.

O homem foi citado e a defesa, inicialmente, tentou acordo de não persecução penal sustentando inexistência de restrição legal ao benefício e enaltecendo aspectos subjetivos do réu: profissional de destaque em sua área, além de pastor, funções em que lida com diversas pessoas, além de pai, bom marido e pessoa honesta, cordial e gentil.

O juiz da Vara Criminal do Foro de Itapevi, Udo Wolff Dick Appolo Do Amaral, analisou todas as provas, depoimentos, defesa e decidiu que os pedidos formulados pelo MP-SP são procedentes, ressaltando que a avaliação sobre os requisitos para o oferecimento de acordo de não persecução penal compete ao ógão, conferindo-se ao juízo, exclusivamente, avaliação sobre a adequação, suficiência ou abusividade do acordo proposto; jamais, substituindo o Ministério Público nessa atribuição. “Ainda que assim não fosse, a tese da defesa [notadamente, a ausência de dolo] é incompatível com o benefício, que pressupõe confissão formal e circunstanciada sobre o delito atribuído”.

Para o magistrado, a autoria e materialidade foram comprovadas.

Houve ainda depoimento que apontou ter ouvido de outras pessoas que o réu se dirigia a elas com referências racistas e homofóbicas. Ficou sabendo que com outra funcionária, o réu disse que ela deveria parar de tomar café pois ficaria “mais preta” e com outro rapaz que é homossexual, ele se dirigia como “preto bicha”.

Alguns se mantiveram isentos e afirmaram que as brincadeiras eram saudáveis, outros testemunhos validaram a fala da gerente financeira, que era chamada pelo réu como “neguinha de cabelo bombril”. As pessoas entendiam que não podiam fazer nada, com medo de perder o emprego.

O réu disse na fase de investigação que reconhece as brincadeiras citadas pela vítima, ressaltando que, sempre procurou ter com os funcionários um relacionamento amistoso e sempre brincou com todos, sempre teve um relacionamento harmônico com todos; que especificamente com ela, quase todos os dias, ao chegar no local de trabalho, chamava-a, carinhosamente de, “neguinha” e dava um beijo no rosto nela, e que, ela nunca havia se importado; que nunca tiveram nenhum problema de convivência.

Afirmou poder ter dito “alguma coisa”, mas não ter razão para se retratar, aceitando fazê-lo caso a pessoa tenha se sentido ofendida do outro lado, se a fez se sentir magoada. Negou preconceito, aduzindo ter negros na família. Contou que, no último dia da empresa, despediu-se de todo mundo e estava na euforia de fazer as coisas darem certo. Não lembra da primeira ocasião a ele atribuída na denúncia e asseverou que a pressão que sofria era forte e, normalmente, por isso, usava de brincadeiras para, de forma descontraída, “quebrar o clima”. Não recorda de a vítima ter mencionado que não gostava das suas manifestações.

A sentença e a subjetividade de brincadeira

“É certo que o acusado praticou os eventos descritos na denúncia, que, evidentemente, tinham conotação prejudicial, a partir de elementos que ligados a cor de pele ou etnia. Efetivamente, ao dizer que ‘se jogasse uma banana para cima’ ‘sairiam pulando’ ou algo do tipo, isso na presença de pessoas negras, evidentemente buscava a associá-las a animais em caráter, por óbvio, preconceituoso. O mesmo, vale dizer, pode ser dito quando dirigiu-se à ofendida – diferentemente das outras pessoas a quem ele se referiu – apontando característica [“cabelo duro”] física com caráter depreciativo. O dolo, entendido como vontade livre e consciente na direção do curso causal, é evidente”.

A hipótese de mera “brincadeira”, conforme o juiz, não descaracteriza a evidência. “De mais a mais, o pretexto de ‘brincar’ não autoriza a pessoa a proferir palavras degradantes a outra; mais ainda em contexto profissional e por pessoa que – segundo consta – jamais concedeu liberdade. Seja como for, ‘brincar’ valendo de insinuações com elementos cor de pele e etnia, atribuindo-lhes teor manifestamente degradante, jamais pode ser tido como aceitável ou tolerável”, ressalta a sentença.

Foram consideradas circunstâncias desfavoráveis o fato de os delitos serem praticados na presença de várias outras pessoas, “potencializando o sentimento de repúdio e ofensa à honra subjetiva, o que deve ser particularmente reprovado, mormente ao levar em conta que também sinaliza audácia e certeza de impunidade na prática”.

O homem foi condenado à pena de 1 ano e 9 meses de reclusão, em regime inicial aberto, substituídos por prestação de serviços à comunidade por igual período e por prestação pecuniária de 5 salários mínimos, e dois meses de multa.

O homem também pagará as custas do processo. Ele pode recorrer. Se a condenação for mantida, com o trânsito em julgado, o nome do réu será inserido no rol de culpados; deverá preencher o boletim estatístico, encaminhando-o à repartição pública competente. O Tribunal Regional Eleitoral também será oficiado para suspensão dos direitos políticos.

Foto: Freepik

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