Inventário sem tabu: a necessidade de planejamento na disposição patrimonial

Diferente de outros países, a finitude da vida humana ainda é um tabu na sociedade brasileira, que dispensa pouca atenção às consequências jurídicas que vêm com a morte. No entanto, saber como funciona a lei e o que é possível fazer com antecedência pode evitar longos transtornos em família.

Para explicar os principais pontos sobre o procedimento de inventário no ordenamento jurídico brasileiro, como ele é feito e a importância de definir o planejamento sucessório, a advogada Alexandra Prada Barretto, do escritório Rafael Rigo – Sociedade de Advogados, esclarece os principais pontos da legislação sobre o tema. Confira a entrevista a seguir:

Discutir a morte em família ainda é um tabu no Brasil, o que não ocorre em muitos outros países. Como mudar esta cultura?
R: As áreas do Direito de Família e Sucessões ainda são grandes tabus no Brasil, em razão da falta de consciência da sociedade acerca da finitude humana, talvez pelo assunto estar interligado às questões emocionais e crendices, faz com que não se pense nas consequências jurídicas advindas com a morte, criando-se uma cultura de que falar a respeito traz mau agouro.

A mudança desse padrão cultural somente ocorrerá quando as pessoas passarem a ter uma educação financeira voltada a aumentar a perpetuidade dos negócios ou acostumarem-se a manifestar sua vontade acerca da divisão dos bens que um dia poderão deixar, utilizando-se dos instrumentos jurídicos permitidos em lei.
É preciso criarem a consciência, da mesma forma como ocorre com um planejamento econômico financeiro, quanto à necessidade e possibilidade em planificar a transferência do patrimônio pessoal de uma forma racional e segura, reduzindo desacertos pessoais e dissensões sucessórias, buscando minimizar os conflitos familiares e evitar uma descontrolada subversão emocional.

O inventário só pode ser feito via judicial? Quais são os tipos de inventários existentes?

R: Existem dois tipos de inventário, o judicial e o extrajudicial. O inventário judicial deverá ocorrer em casos de discordância quanto a partilha dos bens, se existirem menores ou incapazes, ou se algum envolvido não estiver devidamente representado, e também, quando o falecido deixar testamento.

A legislação vigente prevê a subdivisão do inventário judicial em mais dois outros procedimentos, a fim de facilitar e colaborar na celeridade, podendo ser aberto na forma do arrolamento sumário, marcada pela supressão de algumas fases ou atos do inventário judicial, quando existe apenas um herdeiro ou quando todos os herdeiros sejam maiores e capazes e estejam de acordo com a partilha, não importando o valor dos bens nem a sua natureza. Já o segundo procedimento, denominado arrolamento comum, é adotado para patrimônios deixados pelo falecido no montante igual ou inferior a 1.000 salários mínimos, ou seja, atualmente R$ 1.100.000,00, possuindo uma simplificação do rito bem menos significativa, sendo irrelevante se há herdeiro ou interessado incapaz.

Outra modalidade é o inventário extrajudicial, que poderá ser feito em qualquer cartório de notas do país, não dependendo de qualquer homologação judicial, sendo muito mais prático e rápido que o judicial, ressaltando que haverá a cobrança das custas e emolumentos para lavratura da escritura pública e a necessidade em emitir-se documentação atual e autenticada. Além disso, esse procedimento exige o preenchimento de alguns requisitos, devendo todos os herdeiros em questão ser maiores de idade e civilmente capazes, devem, ainda, haver consenso entre todos quanto a divisão dos bens materiais, não podendo assim prosseguir se o falecido tiver deixado bens no exterior. Atualmente é possível optar pelo inventário extrajudicial, mesmo que o falecido tenha deixado testamento, contudo, será necessário esgotar a primeira etapa com a abertura do testamento pela via judicial, requerendo ao juiz a convolação para abertura do inventário via cartório, desde que preenchidos os requisitos informados.

Qual é o papel do inventariante?
R: O inventariante exerce a função legal em responder pelo espólio, que se trata do conjunto de bens, direitos e rendimentos deixados pelo falecido, portanto, a figura do inventariante está carregada de grandes responsabilidades, devendo manter o patrimônio preservado como se fosse seu, submetendo-se à fiscalização do juiz e aos encargos delimitados nos artigos 618 e 619 do Código de Processo Civil, que resumidamente são: (i) listar e descrever os bens do espólio; (ii) declarar os nomes de todos os herdeiros e legatários; (iii) usar dos meios judiciais para proteger os bens do espólio, em caso de turbação ou esbulho; (iv) trazer ao acervo hereditário os frutos percebidos desde a abertura da sucessão, sejam eles naturais, civis ou industriais; (v) pagar as dívidas do espólio; (vi) arrendar e alienar bens da herança, desde que, em acordo com os demais herdeiros e mediante autorização judicial; (vii) prestar contas ao deixar o cargo ou sempre que o juiz determinar; (vii) requerer a declaração de insolvência.

Ocorrendo desrespeitos, transgressões e desvio de suas funções, poderá ser removido de ofício ou a requerimento, sendo destituído do cargo e sofrer sanções, como exemplo, a perda do direito sobre bens que, eventualmente, lhe cabiam em caso de sonegação, inclusive ser responsabilizado pelos prejuízos causados na esfera cível, além da responsabilização na esfera criminal, a depender do caso concreto.

Para evitar inventários longos, o que é possível antecipar em vida?
R: Imprescindível se faz destacar o fato de que os herdeiros não podem exigir a herança de uma pessoa viva, uma vez que esta somente surge no momento da morte do titular do patrimônio. Nada obstante, a legislação possibilita a partilha em vida, através da antecipação de herança, outra opção é a doação, que não necessariamente restringe-se aos herdeiros, inclusive pode o doador instituir cláusula de reversão ou usufruto vitalício, e, ainda, como ato de última vontade através de testamento, contudo, nas hipóteses elencadas deve-se proteger a legítima, destinada aos herdeiros necessários.

Traduz-se como legítima, a divisão de 50% (cinquenta por cento) do patrimônio existente, devendo ser destinada aos descendentes (filho, neto, bisneto, etc.), ascendentes (pai, avô, bisavô, etc.) e o cônjuge, estes necessariamente receberão uma parte da herança, nos termos do artigo 1.845 do Código Civil. Os outros 50% (cinquenta por cento) denomina-se parte disponível, onde o detentor do patrimônio poderá dispor livremente para quem desejar.

Apenas é preciso atentar-se para o fato de que a transferência de bens não pode deixar o doador sem recursos para sua subsistência. Se a pessoa for reduzida à miséria, a doação será considerada inválida. Inclusive, a doação para herdeiros será objeto de colação, uma vez que é considerado antecipação de legítima e deverá ser declarado pelo herdeiro-donatário para igualar as legítimas.

Da mesma forma, ao analisar a disposição de última vontade mediante testamento, caso não existam herdeiros necessários, poderá o testador transmitir 100% (cem por cento) do patrimônio, cabendo elencar a possibilidade em se lavrar o testamento por instrumento público, cerrado ou particular.

Quero fazer um planejamento sucessório. O que devo considerar neste plano?
R: Além das opções acima, concernentes às pessoas físicas, com possibilidade em antecipar a herança ou realizar doações com instituição de usufruto e cláusula de reversão, bem como, os atos de disposição de vontade mediante testamento, é possível às pessoas jurídicas adotar um planejamento sucessório para manutenção, administração e gerenciamento adequado da sucessão patrimonial.

Ainda existem outras possibilidades, dependendo do regime de casamento, onde poderá ser instituído cláusula de incomunicabilidade, inalienabilidade ou impenhorabilidade sobre os bens. Da mesma forma poderá ser analisado ao caso em específico, a formalização de contratos antenupciais e de união estável, ordenando os limites à comunicabilidade dos bens, bem como, optar pela escolha de diferentes regimes de bens, quais sejam: comunhão parcial de bens que é a regra legal, comunhão universal, separação total ou participação final nos aquestos.

Excetuada a regra do regime de casamento na separação obrigatória de bens aos maiores de 70 (setenta) anos de idade, conforme prevê o Código Civil em seu artigo 1.641, inciso II, é possível também, tanto para o casamento ou união estável, alterar o regime de bens no curso do relacionamento.

Além disso, é possível analisar o interesse na abertura de contas em conjunto, escolher os beneficiários em planos de previdência privada, seguro de vida e fundos imobiliários.

Outro ponto que merece enfoque, se refere ao planejamento sucessório de sociedades empresárias de constituição familiar, situação cada vez mais comum no Brasil, mediante a constituição de Holdings Familiares, que, em síntese, atribuirá todos os familiares como sócios e todo o patrimônio familiar será integralizado como capital social da companhia.

No âmbito sucessório poderá contribuir para a extinção ou, pelo menos, à redução de conflitos familiares, bem como, redução dos custos tributários, desnecessidade na abertura de inventário e ausência total do pagamento do imposto sobre herança, ITCMD, além disso, contribuirá na blindagem patrimonial, excetuadas as situações que reconheçam o desvio de finalidade e intuito em fraudar credores.

Importante ressaltar que, no Estado de São Paulo aplica-se a alíquota de 4% (quatro por cento) sobre os bens transmitidos aos herdeiros, contudo, devido à pandemia e justificativa em promover a justiça tributária e reduzir a desigualdade social, a ALESP – Assembleia Legislativa de São Paulo apresentou Projeto de Lei nº 250/2020, tendo como principal proposta o aumento da alíquota do imposto ITCMD – Imposto “Causa Mortis” e de Doações, para 8% (oito por cento) de teto da contribuição.

Quem tem direito à partilha de bens? Como funciona a distribuição da herança?
R: O direito à partilha de bens deixados por alguém depende de vários fatores, como por exemplo a configuração familiar, ter deixado legado ou outra forma de planejamento sucessório, situações, portanto, que devem ser analisadas caso a caso, observando-se uma série de regras e exceções previstas na legislação.
De acordo com a regra geral, há uma ordem de preferência em que a existência de uma classe exclui as demais. Os primeiros que terão direito a receber a herança serão os herdeiros necessários, que são os descendentes do falecido, no caso são os filhos e na falta deles serão destinadas aos integrantes dessa linha, sem limitação: netos, bisnetos, trinetos, tataranetos, entre outros.

A regra é que o mais próximo sempre terá preferência em relação ao mais distante, na falta de descendentes, serão os ascendentes (pais, avós, bisavós, trisavós, tataravós, etc.) que terão direito à herança.

Já o cônjuge ou companheiro será chamado à sucessão em terceiro lugar na ordem da vocação hereditária e a partilha de bens deverá ser analisada de acordo com o regime de bens do casamento. Caso o falecido não tenha deixado descendentes ou ascendentes, o cônjuge sobrevivente herdará sozinho.

O STJ – Superior Tribunal de Justiça decidiu, através do julgamento dos Recursos Extraordinários 646.721 e 878.694, que não pode haver diferença entre cônjuges e companheiros, inclusive em uniões homoafetivas, portanto, não pode haver discriminação que justifique o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro estabelecido pelo Código Civil, devendo ser considerado inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil.

Em conclusão, o cônjuge ou companheiro, seja de família hétero ou homoafetiva, tem qualidade de herdeiro necessário concorrente, independentemente do regime de bens estabelecido no casamento ou união estável, devendo ser respeitada a ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil.

Por último, são chamados a suceder os colaterais até quarto grau, que são somente os irmãos (2º grau), sobrinhos, tios, (3º grau) primos, tios-avós e sobrinhos-netos (4º grau), considerados herdeiros legítimos facultativos, não possuindo legitimidade ativa para questionar os efeitos da partilha de bens se existe cônjuge/companheiro.
Caso não existam herdeiros ou o falecido não tenha deixado testamento, nem ocorra eventual reconhecimento de indignidade, ou até mesmo os próprios herdeiros a renunciem, o patrimônio será transferido para a Administração Pública, (Município, Distrito Federal ou União), a depender da localização do bem.

Tais situações no Direito Civil acarretam na aplicação de dois institutos, denominados herança jacente e herança vacante, que apenas possuem o mesmo ponto de origem – herança sem herdeiro, mas possuem procedimentos diferentes, onde em suma o Poder Público irá adquirir o domínio e a posse dos bens que integram a herança jacente após a declaração da vacância.

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