Fraude na cota de gênero pode dar cadeia

Por Amilton Augusto

A legislação eleitoral exige, para o registro de candidatura dos partidos políticos, na eleição proporcional, ou seja, eleição para vereadores e deputados, a formação da chapa com o preenchimento de percentual mínimo de 30% e máximo de 70% de cada gênero (masculino e feminino), conforme previsão expressa do artigo 10, § 3º, da Lei das Eleições.

Ocorre que, como temos visto, inúmeras ações foram propostas nas últimas semanas, com o intuito de buscar a cassação de chapas de candidaturas proporcionais da última eleição, justamente por fraude na cota de gênero, ou seja, em razão da inclusão indevida e fraudulenta, em quase sua totalidade, de candidatas do sexo feminino, seja sem o conhecimento destas ou com a devida anuência, com o fim exclusivo de fraudar a legislação eleitoral e permitir o lançamento da totalidade das candidaturas em disputa no Município.

Por certo que as ações propostas, na seara cível-eleitoral, que visam a cassação integral do DRAP partidário, já encontra pacífico respaldo na jurisprudência do TSE, que considera como pertinente a nulidade de todas as candidaturas do partido no pleito proporcional, como forma de punição, quando fica provada a fraude no percentual da cota, que nada tem a ver com quantidade de votos obtidos, mas sim na intenção deliberada de inscrever candidato(a) com o único intuito de driblar a exigência legal de percentual mínimo de cada gênero.

Assim, referido ilícito eleitoral, também deve ser caracterizado como crime eleitoral, tendo em vista a inscrição indevida de informação fraudulenta em documento público, ou seja, a inscrição de candidata, com a sua anuência, ou não, com o nítido intuito de fraudar a obrigatoriedade de cumprimento do percentual mínimo de candidaturas exigidas por lei, caracteriza a figura típica do artigo 350, do Código Eleitoral, mais especificamente o crime de falsidade ideológica eleitoral, cuja inscrição indevida no Requerimento de Registro de Candidatura, por se tratar de documento público, conduz a pena de reclusão de até cinco anos de cadeia e pagamento de 5 a 15 dias-multa. Senão vejamos:

Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais:

Pena: reclusão até 5 (cinco) anos e pagamento de 5 (cinco) a 15 (quinze) dias-multa, se o documento é público, e reclusão até 3 (três) anos e pagamento de 3 (três) a 10 (dez) dias-multa, se o documento é particular.

Referido crime, assim como todos os crimes eleitorais, é crime comum, que tem como bem jurídico tutelado a fé pública eleitoral, cujo sujeito passivo primário é o Estado e, secundariamente, a pessoa prejudicada pela falsificação, que no caso da fraude na cota de gênero, poderá a candidata inscrita sem conhecimento e o eleitor, ou somente este, que induzido a erro desperdiça seu voto, numa chapa que não deveria existir.

Veja que, a declaração fraudulenta, para caracterização do crime deve ser essencial ao documento, ou seja, é importante que tenha relevância jurídica para modificar a higidez do documento e do processo eleitoral, no caso, ser suficiente a ludibriar a autoridade judicial quanto à legitimidade dos dados constantes do Requerimento de Registro das candidaturas.

            Portanto, toda vez que, no processo eleitoral, seja utilizado documento do qual haja informação inverídica e seja relevante ao fim a que se destina, com intuito de fraudar a legislação, qualquer que seja, será tipificado nos moldes do artigo 350 do Código Eleitoral, o que não é exclusividade da fraude do RRC, como exemplo no caso do uso de declaração, onde haja afirmação falsa acerca do recebimento de benesse em troca de votos, anexada aos autos de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, com vias a tentativa de cassação de registro ou mandato de adversário político, bem como em dados falsos da prestação de contas da campanha.

A consumação desse crime não exige qualquer resultado ulterior, nem mesmo a necessidade do deferimento do registro das candidaturas, pois se trata de crime formal, cuja consumação ocorre com a ação de incluir os nomes e apresentar o RRC, independente da ocorrência de prejuízo, bastando para sua configuração a potencialidade de dano decorrente da falsidade do conteúdo do documento, conforme decidiu o C. Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 96233/SP.¹

Destaca-se, ainda, que, como em todo crime eleitoral, não se pune a conduta culposa, portanto, é necessário demonstrar o dolo do falsário, ou seja, a vontade consciente de praticar o ato descrito no tipo penal, qual seja, “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”.

Quanto à competência para o processo e julgamento do delito de falsidade ideológica, é importante verificar que a prática isolada do mesmo resulta na competência exclusiva da Justiça Eleitoral, seguindo os critério de fixação da competência penal, caso em que, exceto nos casos em que haja prerrogativa de foro, os agentes serão processados e julgados pelos juízes eleitorais de primeira instância.

Dessa forma, se o infrator não goza de foro por prerrogativa de função, será julgado pelo juiz eleitoral da zona eleitoral do local do crime, independente da eleição que esteja disputando, nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal, que é aplicado subsidiariamente para o processo penal eleitoral, conforme previsão do artigo 364 do Código Eleitoral e do artigo 12 da Resolução TSE nº 23.396/13, que dispõe sobre apuração de crimes eleitorais.

Já no caso em que o agente infrator tenha foro por prerrogativa de função, o vulgarmente denominado “foro privilegiado”, necessário se faz a verificação da competência para julgamento do agente que possua tal prerrogativa para fazer a devida adequação, havendo casos em que o julgamento sairá da esfera de competência da Justiça Eleitoral, podendo ocorrer, inclusive, a cisão dos processos em caso de conexão de crimes.

Por fim, cabe destacar que ninguém está isento de punição, nem mesmo aqueles que já estão respondendo por ações cíveis-eleitorais, que buscam a cassação do DRAP partidário, em primeiro por não haver vinculação da seara cível-eleitoral com a criminal-eleitoral, o que permite o processamento e punição em ambas, em especial por se tratar de punições distintas, e, segundo, porque o prazo de prescrição desse crime é de 12 (doze) anos, conforme previsão do inciso III, do artigo 109 do Código Penal.

Em conclusão, guardadas as devidas proporções, quanto a gravidade da sanção a ser aplicada e, ainda, no que diz respeito a competência para processo e julgamento do crime de Falsidade ideológica eleitoral, poderá responder por este, em até 12 anos, o agente que, voluntária e conscientemente, fez constar ou anuiu com a inserção de declaração falsa da que devia ser escrita, ou seja, inscrição de candidatura fraudulenta, nos autos do Requerimento de Registro de Candidatura, com o fim de prejudicar direitos e burlar higidez do processo eleitoral e a fiscalização da Justiça Eleitoral.

___________________

¹ GONÇALVES. Luiz Carlos dos Santos. Crimes eleitorais e processo penal eleitoral. São Paulo: Atlas, 2012. p. 117-118.

Amilton Augusto
Advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo. Vice-Presidente da Comissão de Relacionamento com a ALESP da OAB/SP. Membro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ. Membro fundador da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (2015). Membro fundador e Diretor Jurídico do Instituto Política Viva. Membro do Conselho Consultivo das Escolas SESI e SENAI (CIESP/FIESP). Coautor da obra coletiva Direito Eleitoral: Temas relevantes – org. Luiz Fux e outros (Juruá,2018).  Autor da obra Guia Simplificado Eleições 2020 (CD.G, 2020). Coautor da obra Dicionário Simplificado de Direito Municipal e Eleitoral (Impetus, 2020).  Palestrante e consultor. E-mail: contato@amiltonaugusto.adv.br.

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