Dolo eventual, prisão dos réus, carta psicografada: as polêmicas do caso do júri da boate Kiss

O júri popular do incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas e deixou 636 feridos no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria (RS), teve grande repercussão nacional e internacional neste mês. E, durante os dias de julgamento e até depois do término, temas polêmicos não faltaram.

A aplicação da tese do dolo eventual dos acusados, a prisão dos réus que foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), contrariando decisão do Tribunal de Justiça gaúcho, o uso de uma carta psicografada como prova da defesa e outros temas marcaram o julgamento. O DJ conversou com José Renato Pierin Vidotti, advogado criminalista com pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-SP sobre os pontos mais polêmicos.

Confira a entrevista a seguir:

A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, de autorizar a prisão imediata dos quatro condenados no caso da boate Kiss, foi correta?
Tranquilamente, a resposta é não. A decisão proferida pelo ministro Fux foi baseada em uma lei que dispõe sobre a respeito de concessões de medidas cautelares contra atos proferidos pelo Poder Público. Ou seja, não poderia gerar reflexos na seara penal e processual penal. 

Muitos juristas criticaram a decisão de Fux pelo fato de o caso ter “saltado” instâncias. Qual é a ordem correta para análise dos recursos e pedidos?
A ordem hierárquica, geralmente, contra decisão de primeiro grau é de competência dos Tribunais de segundo grau (por exemplo, TRF e TJ). Contra a decisão do tribunal de segundo grau, cabe o manejo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e, por último, no Supremo Tribunal Federal (STF).

A alteração da Lei Anticrime, que previu a execução da pena para aqueles condenados a mais de 15 anos de reclusão, tem amparo constitucional, em sua visão?
A meu ver, viola frontalmente o princípio da presunção da inocência, estampada no artigo 5º, inciso LVII da Constituição de 1988, que enuncia: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. De modo que, após a sentença proferida em plenário, isso não torna automático o trânsito em julgado, e, consequentemente, a execução da pena, pois, ainda cabe recurso.

Fux citou, em sua decisão, o respeito à soberania do veredito do júri. O que significa este princípio constitucional e como ele funciona na prática?
Trata-se de um princípio primordial que visa garantir ao jurado/cidadão componente da banca julgadora a sua autonomia e imparcialidade do que bem entender sobre a causa em julgamento no Plenário do Júri, o que, na prática, este cidadão fica livre para aceitar a tese defensiva ou acusatória, e votar acerca dos quesitos na sala secreta de forma livre e sigilosa.

Durante o julgamento, chamou a atenção o uso de uma carta psicografada, atribuída a uma das vítimas do incêndio, por parte da defesa de um dos réus. Trata-se de uma prova válida? O que diz a jurisprudência a respeito?
É válida, mas não pode ser usada como uma única prova a ser fundamentada em eventual decisão judicial, pois a carta psicografada não possui a chamada “qualidade probatória” nem o “contraditório possível”, como explicou o professor Aury Lopes Jr.

O julgamento ocorreu em Porto Alegre, e não em Santa Maria, palco da tragédia. O que é o desaforamento e porque ele foi reconhecido neste caso?
O Código de Processo Penal prevê o desaforamento nas possíveis hipóteses: (a) Por interesse da ordem pública; (b) Quando pairar dúvida sobre a imparcialidade do Júri; (c) Quando houver risco à segurança pessoal do acusado; ou (d) em razão do comprovado excesso de serviço, ouvidos o juiz presidente e a parte contrária, se o julgamento não puder ser realizado no prazo de 6 (seis) meses, contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia. No caso em comento, o desaforamento foi alegado pelo risco de parcialidade dos jurados, haja vista se tratar de uma cidade pequena.

Um ponto polêmico do julgamento foi a aplicação, por parte do Ministério Público, da tese de dolo eventual, ou seja, que os acusados assumiram o risco de matar com suas condutas. O que significa esta tese? Em seu entendimento e dentro do que foi possível analisar, foi aplicada de forma correta?
O dolo eventual é um dos elementos da tipicidade. Para a caracterização de um crime, é necessário termos: Tipicidade + Ilicitude + Culpabilidade = CRIME.

Dito isto, a meu ver, foi erroneamente aplicado ao caso, pois o dolo eventual é dizer que as quatro pessoas previram o resultado de produzir, embora não quisessem e consentiram com a sua eventual produção. Analisando o julgamento, deveria se reconhecer a forma culposa, bem como desclassificação do delito, para o delito de causar incêndio em sua modalidade culposa.

O instituto do júri popular é previsto pela Constituição e julga crimes dolosos contra a vida. O réu não é julgado pelo juiz togado, mas por seus pares. Em casos de repercussão, sempre há questionamentos sobre o julgamento por leigos. Para estes tipos de crimes, é a melhor forma de julgar acusados?

Em se tratando de crimes dolosos contra a vida, o processo é chamado “bifásico ou escalonado”, ou seja, em um primeiro momento tem o denominado “sumário da culpa” onde um juiz togado avalia se remete a demanda para a população julgar ou não.

Nesse segundo momento, após o sumário da culpa, a população é quem julga o caso de forma com sua livre convicção. A meu ver, não é a melhor forma de se julgar estes casos, porque, geralmente são empregados termos técnicos ou até mesmo de provas com certo grau de complexidade a serem compreendidas por pessoas leigas.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

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