Como ter Consciência Negra?

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

No próximo dia 20, o Brasil terá uma data das mais significativas do calendário anual. Trata-se do Dia Nacional da Consciência Negra, data esta que homenageia Zumbi dos Palmares, um ícone na luta por liberdade no Brasil. Ainda há resistências, por todo o País, tanto que nem todo município ou Estado decretou feriado neste dia. Com argumentos em nossa opinião pífios, críticos a ideia do feriado, alegam problemas na economia, com mais “um dia” sem trabalho.

Interessante é que ninguém questiona o 21 de abril. Para nós é muito pensar em decretar feriado, por uma tentativa de liberdade. Mas será por que a Inconfidência Mineira foi feita por brancos, monarquistas e de classe média? Aliás, muito dos inconfidentes não só eram escravagistas, como tinham escravos negros.

E mais interessante ainda é o fato de que outra inconfidência, a Baiana, protagonizada por escravos negros, sequer é citada com importância devida em nossa historiografia, quem dera ter um feriado para chamar de seu.

Já a Consciência Negra não propõe o saudosismo, um dia de relembrar quem foi Zumbi dos Palmares apenas, até por que muito de nossa história, em especial da escravidão negra, foi queimada, destruída pós-abolição. Mas, além do Herói da Liberdade, o dia é para refletir que o Brasil é, sim, um País onde o racismo é estrutural e caminha, infelizmente, em nosso cotidiano.

Estatísticas dão conta de que, no mercado de trabalho, se a pessoa for negra, sua remuneração é menor do que um branco exercendo a mesma função. Se for mulher e negra, a situação é pior ainda. Na lista do desemprego e do trabalho informal e precarizado, a maioria é negra.

Nas artes é difícil ver negros como protagonistas de uma novela ou filme ou peça de teatro. A eles são definidos papeis sujos, como traficantes, fora da lei, além de papéis de motorista de madame, empregada doméstica, babá e outras. Na música e no futebol, temos aí uma exceção, mas, mesmo assim, na primeira tem que ser sambista e, na segunda, um novo Pelé.

Estatísticas, inclusive governamentais, dão conta que a maioria de nossa população carcerária é da comunidade negra. E mais em batidas policiais sem mandados judiciais, onde você tem um negro e um branco envolvidos, o primeiro é suspeito e o segundo liberado.

Outro aspecto é o da Consciência propriamente dita. Além de brancos muitas vezes cometerem atos discriminatórios, por não saberem que o estão, há negros que negam sua origem e sua cor.

O leitor deve estar se perguntando: “Cê tá de brincadeira que tem pessoas Negras que negam sua raça?”. Sim, inúmeras tentativas de embranquecimento de pele são feitas no Brasil, correndo o risco de problemas sérios de saúde. Além disto, cabelos lisos, negando o duro ou as tranças e cacheados.

Não há dúvida que o muito disto é a falta de informação, de conhecimento de sua própria História e origens. Então pensei que as artes são um caminho para a busca de consciência e de novas atitudes. Elas são inovadoras e revolucionárias, têm a capacidade de propor mudanças.

Assim fiz sugestões abaixo para que todos, negros, brancos, amarelos, vermelhos, curtam as obras aqui elencadas.

Ler sinônimo de mudanças

“O Olho Mais Azul”, de Toni Morrison

Imagine uma pessoa negra, adolescente, que desde que nasceu ouve que é feia, por ser negro, cabelo duro, e não ter olhos azuis.Imagine esta pessoa ser uma mulher, que é discriminada por onde anda, seja na escola, seja no prédio onde mora, repleto de negros como ela e pobres marginalizados.

Imagine este quadro, nos anos 40, em pleno Estado Unidos, onde o racismo era institucional e tratado como normal pelo estado, que se colocava como violento e financiador das chacinas contra o povo negro e pobre.

Toni Morrison vai contar a saga de uma família negra, que tem dificuldades de se aceitar como tal, e sofre toda a sorte de mortes e violência. Um texto que nos leva, em especial os negros a refletirem sobre ir à luta por espaço na sociedade não negar sua cor, é afirmá-la. Um best-seller que venceu o Nobel de Literatura em 1993.

“Cartas para minha Avó”, de Djamila Ribeiro

Apesar das novas tecnologias, que facilitam nossa vida, sou fã de antigas formas de comunicação. Entre elas as cartas, de preferências escritas a mão, colocadas em um envelope, gostava dos brancos e dos vermelhos, selados e enviados ao correio.

As cartas dizem muito mais de nós que as mensagens eletrônicas, que muitas vezes são limitadas a um ou outro assunto.

A filósofa, escritora e militante negra Djamila Ribeiro nos brinda com este livro, com duas situações emblemáticas. A primeira, dirigir os escritos a sua avó, que já mora no céu, mas que foi uma de suas influências e referência, em especial na religião Afro e na cultura.

Partindo do afetivo, Djamila passeia por sua vida pessoal, o racismo, o machismo, de fora e de dentro da sua família. Revela-nos a busca de sonhos, de muitos sacrifícios para se chegar aonde quer. Um livro que fala sobre militância, mas que o carinho e o afeto permeiam a narrativa.

“Na Minha Pele”, de Lázaro Ramos

Gosto de manuais, eles nos ensinam questões que nos ajudam naquilo que for necessário. Pensar não em regras, mas em posturas e condutas, os manuais são bem-vindos e aceitos.

Lázaro Ramos, em sua carreira, deve ter se encontrado com vários manuais, em especial o de ator. Mas com certeza, e ele afirma isto em sua obra “Na Minha Pele”, não achou nenhum que pudesse dizer como um ator negro, não um negro ator sobrevive ao showbiz, que releva os negros a condições submissas de atuação.

“Na Minha Pele”, seu primeiro livro, não é autobiográfico, embora na primeira parte ele conta um pouco de suas origens, infância e juventude. Mas é na segunda parte que o artista nos brinda de como combater o racismo.

Lázaro Ramos defende a pluralidade ética racial e sempre através do diálogo e da paz. Faz-nos entender, e em especial a comunidade negra, que é preciso conhecer origens, se cercar da cultura afro, nunca negar sua condição na sociedade e lutar por inclusão a ela.

Música para voar

“No tempo da intolerância”, de Elza Soares

Elza Soares comeu o pão que o diabo amassou literalmente. Negra, mulher e amando um jogador de futebol ídolo e sonho de todos como o atleta perfeito, Elza já tinha sofrido abusos na infância, e enfrentava uma sociedade que a condenava por ser preta e emponderada.

Sua carreira nunca diminuiu o que pensava do mundo, suas declarações feministas e antirracistas são fortes em sua obra. “No Tempo da Intolerância” foi gravado um ano antes de sua partida para os céus.

É um disco político, um manifesto claro em favor da negritude, denuncia o racismo, a violência à mulher e a fome, desenvolvidas no disco anterior “O Planeta Fome”. Destaque para faixa de abertura, “Justiça”, onde Elza compara a Ditadura Militar dos anos 70 com o governo de um miliciano genocida. O outro é a faixa título, que expôs o efeito dos últimos quatro anos de intolerância.

Elza Soares VIVE.

“Amarelo”, de Emicida

Confesso que não tinha, há alguns anos, paciência para o Hip Hop. Por total desconhecimento, o achava repetitivo tanto no ritmo, como nos temas das letras. Mas foi no programa “Toca Brasil”, da Rádio Magnificat FM de Limeira, em que pude entrevistar vários rappers, é que fui entender a ideia revolucionária de um movimento que nasce dos pobres negros da periferia.

Mas “Amarelo”, de Emicida, me puxou para as lágrimas, me fez enxergar a poesia de rua, com versos que não devem nada a Drummond. O título foi chupado de um poema de Paulo Leminski, “Amor é um elo, entre o Azul e o Amarelo”.

Um disco de amor, que denuncia o racismo, as desigualdades sociais e que nos faz lembrar Belchior na faixa título: Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro.

“Refavela”, de Gilberto Gil

Buscar as origens, tiradas com a escravidão e o cativeiro, deveria ser a meta dos afrobrasileiros. Gilberto Gil, sempre antenado com o seu tempo, descobre um novo lugar do negro na sociedade.

Em 1977, a novas senzalas, eram as favelas, e os conjuntos habitacionais do BNH. Lá, como na escravidão, a resistência eram as artes, a cultura, como a religiosidade do Ilê Ayê, o cabelo Black Power, a Black Music e por aí afora.

Com todo este cenário, Gil lança, em 1977, o segundo disco da Trilogia do Rê. “Refavela” é o lado urbano da trilogia, é o lado das cidades cruéis com negros e pobres.

O compositor, como ele mesmo gosta de dizer, nos presenteia com sons e tons diversos. Destaque para a faixa título, Ilê Ayê, Aqui e Agora, Babá Alapalá.

Cinema também é preto

“Medida Provisória”, de Lázaro Ramos

“Medida Provisória” não é uma ficção, é real demais para acreditarmos ser apenas um conto retratado na tela grande.

Pensar em um futuro distópico, não tão distante assim de nós, em que não brancos são convidados e depois forçados a voltarem para África, de onde nunca vieram, dói os ossos, faz rememorar os últimos quatro anos de um miliciano no poder.

Uma das frases que destaco no filme é: “Não gostou, se mude”, lembra o vai pra Cuba. A ideia de se apossar do País por uma raça que se diz “pura” lembra os discursos golpistas, xenófobos, homofóbicos e racistas, proferidos até 31 de dezembro de 2022.

O filme, o primeiro do ator e agora diretor Lázaro Ramos, é um primor de realidade e de tragédia, mas aponta caminhos como o da luta e da organização. Disponível no Globoplay.

“Mulher Rei”, de Gina Prince

Produções que têm Viola Davis no elenco já criam um frisson imenso, expectativas de grandes roteiros. “Mulher Rei” faz jus ao protagonismo de Viola, que representa em seus personagens temas como o de gênero e raça.

A história se passa no antigo reino de Daomé, hoje a República do Benin, onde um exército de mulheres é quem protegia a população de invasores, contra os franceses e depois brasileiros e portugueses escravagistas.

O Exército traz um perfil de mulheres empoderadas, desde cedo a aprender a caçar e a guerrear, embora a elas se proibisse o casamento, por exemplo. O filme, às vezes, se perde no estilo aventura, ação bem americano, mas mostra uma África que resiste a ser violentada.

E Viola Davis, hein? Fantástica como sempre, o espelho da mulher preta e guerreira. Disponível no HBO Max.

“Quilombo”, de Cacá Diegues

Cacá Diegues é, de todos os diretores do chamado Cinema Novo, o mais que se aproxima de nossa história. Seus roteiros baseados em relatos reais trazem a ficção mais próxima da realidade.

“Quilombo” foi feito em um cenário, de luta por eleições diretas e fim da ditadura. Era o ressurgimento das manifestações de massa, da festa transformada em luta.

Na película, o diretor conta a saga de Ganga Zumba, Dandara e Zumbi dos Palmares, três ícones da maior experiência de liberdade de nossa história, os quilombos.

Com um superelenco e uma trilha sonora, escrita por Gilberto Gil e Wally Salomão, nos faze conhecer o que os livros escolares nos privaram e refletir sobre a importância da Liberdade. Disponível no Youtube.

A todas e a todos, um bom fim de semana e excelente dia da Consciência Negra.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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